30 julho, 2020

A farinhada


Texto de:
José Melo
Recife-PE
Março/2013

A Farinhada

Na farinhada 
lá na Serra do Teixeira 
Namorei uma cabôca 
Nunca vi tão feiticeira 
(Luiz Gonzaga) 


No finalzinho da tarde, peguei a velha bicicleta e me diriji à Casa de Farinha. Hoje tem farinhada! Não pode ser desperdiçada a chance de fazer o que a maioria dos jovens sertanejos daquela região fazem: “Fosterar”! Sim, isso mesmo, fosterar. Não me pergunte que diabos isso quer dizer, sei apenas que fosterar, no linguajar da região é participar, não como trabalhador, mas sim apenas um visitante que ajuda nas tarefas da fabricação da velha e boa farinha de mandioca. 

Apesar de conviver no meio rural desde criança, esta é a primeira vez que vou “fosterar”, e isso me anima, pois irei conhecer todo o processo de fabricação da farinha, e também aprender alguma coisa relacionada a equipamentos e palavras estranhas: caititu, manipueira, roda, fosterador, prensa, entre outras. 

A Casa de farinha tradicional do sertão é semelhante aos antigos engenhos de rapadura: um galpão arredondado, coberto de telhas, um forno redondo, imenso, aquecido por lenha de madeira da região, uma engenhoca feita em madeira chamada de prensa. 

O trabalho começa com a chegada da mandioca em carros de bois ou em caçuás conduzidos por uma tropa de jumentos, Despejada ao chão forrado com uma lona, começa aí a manipulação da farinha: com uma habilidade fora do comum, mulheres descascam as batatas da mandioca, geralmente auxiliadas por alguns fosteradores. Criam-se competições para ver quem descasca mais batatas. O vencedor é aquele que consegue dar um “capote” no adversário: Capote é quando o vencedor consegue descascar duas batatas contra apenas uma do oponente. 

Descascada a mandioca vem a segunda fase do processo: após lavadas, as batatas são trituradas no “caititu”, um engenho rústico, acionado pela roda, impulsionada por dois homens, que fica a alguns metros de distância, unida por uma imensa correia – tipo daquelas de ventilador de automóveis, porém confeccionada com couro de boi. Fase seguinte requer muito esforço físico: é a prensagem da massa triturada da mandioca. A prensa nada mais é que uma caixa de madeira reforçada, com uma tampa um pouco menor que a caixa, e que é acionada por alavancas de madeira, espremendo assim a massa e retirando a “manipueira”, o sumo da mandioca, altamente tóxico, e separando a goma, matéria prima da decantada tapioca e do beijú. 

Agora é a etapa mais esperada pelos fosteradores: peneirar a massa. Uma peneira – ou arupemba, no linguajar dos mais velhos, dependurada por corda aguarda um casal de fosteradores para peneirar a massa. É aí que começam muitos namoros entre os jovens sertanejos. Contato das mãos escondidas pela massa acende o fogo de muitas paixões. E depois de um entrosamento entre o casal, este dá lugar a outro par de jovens e vai para os primeiros amassos, geralmente rápidos e fugazes, pois o respeito tem que ser mantido no ambiente de trabalho. 

Vencida essa etapa, finalmente acontece a complementação de todo o processo: a massa é colocada no enorme forno para ser torrada, sendo vigorosamente mexida por imensa pá de madeira, cujo cabo mede cerca de dois metros, para atingir todos os pontos da enorme bandeja que é o forno feito de grandes ladrilhos de cerâmica. Exala um agradável aroma enquanto é remexida, ficando pronta em pouco tempo. 

É nessa fase que é fabricado o beiju, uma enorme tapioca feita não da goma, mas da massa da mandioca misturada com um pouco de goma e côco, o qual é colocado dentro da massa de farinha que está sendo torrada, e que em poucos instantes vai deliciar os presentes. 

Esse processo é repetido dia e noite, até encerrar a farinhada, com sacos e mais sacos de farinha sendo transportados para a casa do dono da farinhada. A Casa de farinha geralmente serve ao seu proprietário e aos vizinhos, estes pagando um percentual em farinha pela utilização dos equipamentos. 

Tudo isso acima relatado faz parte de um passado que não mais existe. Os avanços tecnológicos conseguiram acabar com o romantismo das farinhadas. Hoje, modernas máquinas substituem as mãos ávidas de carícias do parceiro na peneira. A energia substituiu o par de homens que giravam a roda para moer a mandioca no caetitu, além de afugentar os fosteradores, categoria que foi extinta pela televisão. 

Nada tenho contra as “modernidades”, mas que peneirar farinha roçando as mãos de uma cabocla feiticeira, era muito melhor que qualquer capítulo de novela, isso nem se discute.

por José Melo Soares

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