Por: Vanise Rezende
Texto atualizado em setembro - 2021
Para que eu viesse ao mundo, deu-se uma história muito singela.
EsterPires (1910-1998), de cerca de 20 anos, era uma moça cordial e simpática, de olhar terno e rosto vivaz – contornado de cabelos lisos, pretos e curtos. Levava modos educados e simplicidade no vestir. Era hóspede de Tio Pordeus, que residia em Custódia, situada na microrregião do Moxotó, sertão de Pernambuco. A família Pires Ferreira, a que pertenciam, tem raízes em Tabira, região do Pajeú no alto sertão.
Né Marinho (1902-2002), um jovem tabelião da comarca de Custódia, nascido nas terras do Tamboril, filho de Izaura e de Serapião Domingos de Rezende, o primeiro tabelião da cidade. Há notícias de que ele vivera em Quitimbu, antes de se instalar no Tamboril, que ficava logo após o cemitério, em direção ao Carvalho. Posteriormente, o Tamboril pertenceu a José Rodrigues, filho de Nemézio Rodrigues, o primeiro prefeito de Custódia.
Seu Né – como era chamado – era um rapaz elegante, de estatura mediana, sorriso maneiro e olhos verdes sagazes. Um partido e tanto para as moças do lugar. Usava sempre um terno de linho branco e não dispensava a gravata, mesmo durante os tempos mais quentes do verão.
Aconteceu no início dos anos 30 – Seu Né,que era oito anos mais velho do que a jovem Ester, notou a sua presença, quando ela passeava com o Tio Pordeus para conhecer a cidade. Parando para cumprimentá-los, logo a convidou para mostrar-lhe a feira da cidade no dia seguinte.
No passeio pelas barracas da feira – que se estendia no quadro da rua, diante da Matriz de São José – Ester, com seu jeito gracioso, deteve-se para observar artigos finos de porcelana, com desenhos de figuras japonesas, e copos de vidro com monogramas dourados. Ainda hoje me pergunto como essas peças chegavam a Custódia, na época, para vender na feira.
Seu Né, ágil e ousado, escolheu um copo gravado com a letra “E”, com frisos dourados, e o ofereceu à jovem visitante. Abria-se, assim, o diálogo de um afeto que resultou na formação de uma família de sete filhos. Casaram-se no início dos anos 30. E tiveram sete filhos: Leny, Vanise, Laíse, Hélio, Herbert, Marilda e Manoel, conhecido por Cecéu.
Ainda guardo a imagem do meu pai assinando livros enormes, nos quais fazia-se o registro das escrituras, tudo cuidadosamente manuscrito por seus auxiliares. Um deles era o Sr. Manoel Rodrigues, que não sei se era custodiense, mas residia na cidade.
Meu pai tinha uma atenciosa relação com os trabalhadores rurais do município, e muito os ajudou a resolver questões atinentes às suas propriedades ou aos seus contratos como rendeiros. Lembro que muitos deles apeavam seus jumentos no Ficus diante da nossa casa, e nos deixavam os frutos da terra, conforme a bondade da chuva– um gesto de gratidão pela atenção que meu pai lhes dispensava. Quando Seu Né deixou o cartório, apresentou o Sr. Manoel Rodrigues ao amigo tabelião João Roma, no Recife. Foi Manoel Rodrigue que terminou assumindo o cargo de seu substituto.
O meu interesse pela escrita deve ter suas raízes ali, enquanto via meu pai no cartório, sempre ocupado com textos, registros e escrituras. Ainda tenho comigo a sua caneta tinteiro, uma Parker com tampa dourada – desgastada pelo tempo – pois ele a usara por anos e anos! Seus traços biográficos foram descritos, de forma irretocável, pelo consultor e escritor custodiense José Melo, neste blog.
Aprendi a gostar de música ouvindo as canções entoadas por minha mãe, Ester, enquanto pedalava a sua máquina Singer, costurando as roupas dos filhos. Lembro que, na época, além de costurar as nossas roupas, ela também cortava toalhas de banho e lençóis, finalizados com bicos bordados, pois ainda não eram encontrados já prontos.
Do seu lugar de trabalho, em casa, minha mãe acompanhava tudo. Quem não obedecia ficava no quarto, de castigo, sem doce de leite nem cocada, sem pirulito nem bolo de goma. Ela gostava muito de cantar, enquanto trabalhava, e era amiga de toda a vizinhança, com o seu jeito simpático e colaborador. Sabia receber bem os amigos do meu pai, ou alguma visita como a do juiz de direito, do médico ou do procurador da vez, que vinham de Sertânia ou Arcoverde para dar expediente em Custódia. Também lembro as novelas de rádio que ouvia, com ela, e ficava imaginando os personagens, seus semblantes e suas roupas. Não tenho dúvidas de que aquelas novelas foram a minha iniciação para imaginar fatos, episódios e personagens, que me inspiram hoje as crônicas, poesias e novelas que escrevo.
Nos cuidados da casa, éramos apoiados por duas Marias.
Maria Grande era introvertida, não gostava de adulações e costumava ser atenciosa e calma. O seu espaço era a grande cozinha, com um fogão de lenha no centro, tendo ao lado uma despensa. Talvez se possa afirmar que Maria Grande viera de um dos Quilombolas da região. Eu gostava de me aconchegar aos seus cuidados. Vez por outra ia à cozinha, na hora que ela almoçava. Ela oferecia-me um bolinho de feijão com farofa, amaciado em suas mãos, a coisa mais gostosa que eu experimentava da sua ternura.
A outra – que chamávamos Maria Pequena –, viera dos sítios do entorno e coadjuvava minha mãe botando sentido nas crianças, como se usava dizer entre nós. Dela, me recordo quando nos chamava para o lava-pés, na varanda interna da casa que se abria para o quintal. Era lá que ficava o “lavatório” – , a bacia e a jarra de ágata com desenhos coloridos. Dado que não havia água encanada, o lavatório nos servia para o ritual diário de quando acordávamos, antes das refeições e quando íamos dormir.
Na memória espacial da minha infância, nossa casa era imensa, com vários quartos e duas salas grandes, a de estar e a das refeições, ligadas por um corredor que ladeava os quartos. Quando fui para o internato, aos 11 anos, eu só ia a Custódia no período das férias escolares. À época, houve uma reforma na casa, fez-se uma nova fachada, e foram comprados móveis novos, no Recife, para torná-la mais moderna.
Em suas idas ao Recife, meu pai parava em Pesqueira, para me visitar. Queria sempre saber das minhas notas, de como eu me comportava e se estava bem de saúde. Conversávamos no “parlatório” do internato. Eu me sentia muito amada com o afeto que ele me dedicava. A saudade da minha mãe era amenizada com as guloseimas que ela me mandava: bolos de goma, caixinhas de Todd, ameixas secas, uvas-passas e Leite Moça, para misturar com o chocolate. Eram os primeiros produtos industrializados que conhecíamos, além do Guaraná Fratelli Vita.
No ano em que completei 15 anos (1953),iniciei os meus primeiros passos para a tão sonhada liberdade. Fora convidada a atuar na JEC - Juventude Estudantil Católica, Região Nordeste. No Recife, meu pai entrara em contato com o professor e filósofo Zeferino Rocha, então sacerdote,assistente da JEC, na região. E só permitiu que eu fosse estudar no Recife, sob a sua tutela. O padre Zeferino conseguira que eu ficasse hospedada numa residência da Ação Católica para universitárias. Ali fiz excelentes amizades, e aprendi muito, pois tínhamos cozinheira, mas devíamos fazer turnos para dar conta da limpeza da casa. Depois, mudei para um pensionato, para ficar com Leny e Laíse, que tinham vindo para a capital. Meu pai continuava a nos visitar mensalmente, trazendo-nos os sabores de Custódia e as notícias de Ester. Foi nesse período que fiz o Curso Normal, embora o meu sonho fosse fazer o Clássico - eu já pensava em estudar algo ligado às letras. Mas meu pai me orientou a fazer o Normal - dizia que era um curso mais adequado para as mulheres se prepararem para o casamento. Eu não podia fazer mais do que assentir.
Em 1959, com apenas 57 anos, Seu Né decidiu vir morar no Recife, com minha mãe. Os filhos menores foram matriculados em colégios locais. Ele ainda esteve trabalhando um período em Custódia, como rábula, em defesa de pessoas menos favorecidas.
Fiquei pouco tempo com a família, no Recife. Em 1961 fui para a Itália, a convite do Movimento dos Focolares. Ao autorizar a minha viagem, papai me fez assumir o compromisso de que lá deveria entrar na universidade. A sua aquiescência me fez entender o quanto ele me amava e confiava em mim, deixando-me viajar, aos 21 anos, em busca dos meus sonhos.
Fiquei distante de Custódia e dos custodienses por muito tempo, por ter ido residir muito cedo no Recife, e, depois, no exterior. Muitos anos depois, quando eu já estava casada, viajei com Luiz Carlos e nossas três filhas, para fazê-los conhecer a saudosa paisagem da minha cidade natal. Se bem me lembro, na ocasião visitamos a fazenda da família de Teté – minha amiga de infância –, e chegamos a ir ao Sabá. As fotos que tiramos são pouco ilustrativas, como eram as fotos de então. Mas a velha casa da Rua Padre Leão, nº 49, ainda estava intacta, e assim ficou, até hoje, na minha memória.
Como tudo muda em nossa vida, mais tarde a nossa casa foi transformada numa nova construção. Hoje, nas fotos da Rua Padre Leão, não mais encontro o pé de fícus na frente do que era a velha casa, nem mais o chão precioso em que fomos tão felizes, na nossa cidade natal.
No livro A Baraúna, do escritor custodiense José Carneiro e Souza, ele descreve Né Marinho como “um homem de personalidade marcante, como serventuário da justiça e empreendedor. Tabelião de competência reconhecida como Oficial do Registro Geral de Imóveis da comarca e proprietário do Bar Fênix, que fez história como o centro social de maior importância da cidade por longo tempo.”
Não deve ter sido fácil para o meu pai transferir-se para o Recife, com a família, deixando a cidade que ele tanto amava e que viu nascer, ainda na época em que era uma pequena vila. Por mais de 50 anos ele dirigiu o cartório e fez muitos amigos. Sem dúvida, a sua única motivação para vir residir no Recife, fora a de querer acompanhar de perto os filhos, que, em sua visão, deviam estudar em boas escolas e se preparar para fazer a faculdade. O seu maior empenho era o de nos oferecer a oportunidade de escolhermos uma profissão que desse prazer e segurança às nossas vidas.
Também no Recife meu pai cultivou vários amigos. Encontrava-os no antigo Bar Savoy, um conhecido bar situado na Av. Guararapes, no centro da cidade. O Savoy era muito frequentado por escritores, políticos da atualidade e poetas como o inesquecível Carlos Pena Filho.
Em sua vida, meu pai sofreu três golpes de imensa dor: a trágica morte de Cecéu, em Custódia, ainda criança, que o deixou muitíssimo abalado, a perda de Hélio, nosso irmão muito amado, que se foi de repente, aos 31 anos, pouco tempo depois do seu casamento, e a partida de Ester, minha mãe, aos 88 anos, também de repente, em razão de um problema cardíaco.
Depois de uma vida longeva e saudável, Seu Né nos deixou, pouco meses antes de completar 100 anos. O médico que o acompanhava costumava entretê-lo, dizendo-lhe que estivera em Custódia, que chovera em todo o município e que a política seguia cada vez mais animada. E, cada vez, meu pai o ouvia com um largo sorriso de satisfação. A sua cidade natal ainda era motivo de boas lembranças e alegrias.
Quando eu estava com ele – que, então, vivia sob cuidados médicos, no sistema Home Care, em Olinda –, sempre me perguntava por cada um dos filhos e filhas. Embora tivesse seguido as nossas conquistas pessoais, com o interesse que lhe era peculiar, alegrava-se de me ouvir contar, repetidamente, sobre as nossas conquistas e as chances que se abriam para o nosso futuro. Confesso que eu chegava a enfeitar um pouco as nossas conquistas, para alegrá-lo. Nessas ocasiões, ele acendia o seu olhar sereno, com a alegria de quem havia cumprido a sua missão. Estava pronto para fazer a grande viagem.