12 julho, 2020

O que mais era Custódia pra mim?



Eu sempre olhei para trás. Andarilha, para não se esquecer de onde vim. De uma terra braba. Terra esta que me deu panos pra mangas, coragem pra vida e desejo de viver sempre na alegria e na santa paz do meu lugarejo(mistura de casa e lugarejo, onde nunca vivi, pois é somente terras de minha imaginação). Invento histórias, invento vidas, invento encantos e percevejos que me levam pra longe, distante da memória de hoje. Vou lá ao fundo da alma buscar alento par contar esta história. Que não foi inventada, foi vivida mesmo. Fantasmas rodeiam-me, mil mãos ancestrais me enlaçam, me abraçam e riem em torno de mim. Eu gosto do passado, o meu não foi melhor nem pior. Foi. Se foi. 

Procurei na Internet o definir de Custódia. Achei esta decepção. Decepção não estou exagerando: achei o que é. Realidade wikipediana, fria, crua, sem história: 

« A ocupação da área onde hoje fica a cidade de Custódia teria sido iniciada no século XVIII, tendo à frente o coronel Luiz Tenório de Melo Dodô. O povoado, inicialmente denominado Quitimbu, mudou de nome para Custódia por sugestão de padres jesuítas que, por algum tempo, instalaram-se na localidade, onde construíram uma capela. O distrito, que pertencia ao antigo município de Alagoa de Baixo (hoje Sertânia), tornou-se município autônomo a 11 de setembro de 1928. 

Localização: Sertão, microrregião Moxotó, distante 340 km do Recife. 

Área: 1.270 km2 
Solo: Arenoso e pedregoso. 
Relevo: Suave ondulado, ondulado e forte ondulado. 
Vegetação: Caatinga hiperxerófila. 
Ocorrência mineral: - 
Precipitação pluviométrica média anual: 1.110,0 milímetros. 
Meses chuvosos: Fevereiro – Abril 
População: 30.314 habitantes 
Dia de feira: Segunda-feira 
Data de comemoração da emancipação política: 11 de setembro
Prefeito: Luiz Carlos Gaudêncio 
Padroeiro: São José 

Será que sonhei Custódia? Cadê sua história? (Na época não existia ainda o Blog Custódia Terra Querida. Preencheu perfeitamente essa lacuna.)



A bem da verdade, não lembro quase nada de Custódia: um quintal, onde foi enterrada minha irmã, por ser pagã, uma escadaria, uma janela onde um dia vi cair um homem, Zé Baié, Tio Né e Mariinha, banho de lajedo. 

O cemitério, a igreja, a ladeira onde descíamos de rolamento, (era o skate da época!). Lembro-me do preto véi Caitutu. O carregador de água carrega água de galão. Minto, não era velho, eu era criança. Caitutu é uma lembrança tenaz. Não sei se ainda vive. Ficava todas as tardes escorado na parede do muro do jardim da casa de madrinha Naïsa, madrinha de fogueira, coisa séria e pra sempre. Quando eu passava se ria e dizia « eita a broquinha tem uma estampa bonita » queria dizer a brotinha. Meu irmão, o Tonho ouviu uma vez se zangou e bateu-lhe o pau do galão nas costas. A lembrança é tenaz e forte, como disse, quando voltei em Custódia, isso em 1980, voltando do exílio. Caitutu se encontrava no mesmo lugar, com o mesmo sorriso me falou: « num falei que a broquinha ia ficar bonita »? Fiquei pasma, então eu não mudei? 

O que mais era Custódia pra mim? 

Volto ainda no tempo: nasci numa terra braba perdida nos confins de Pernambuco. Betânia, terra de água doce e de maracujá. Vi a luz na Escola Rural, segundo me contou Quincas alguns meses atrás. Talvez por isso nunca gostei de escola?

Não me admira. Um dos divertimentos do domingo era ir para o Poço do Pau comer doce de tomate. Nunca mais vi este doce em lugar nenhum. Numa desta, era um domingo de ventania, eu tinha uma sobrinha, era tão miúda e magrinha que o vento me levou pra longe. Longe, muito longe. Minha mãe nasceu bem mais longe ainda: Nos Coqueiros, terra de meus avós, de muita manga, caju e castanha. Tinha três anos quando meu pai me levou pra lá, nessa época nem imaginava que destino me esperava. De cigana, soube depois. Meu pai gostava de ir e vir, era sem sossego. Levou a gente para Custódia, como eu dizia, foi ali que a guerra começou a me perturbar. No meio do caminho perdemos a gata do meu pai. Ficou tristíssimo e cantava: 

“Ai minha gatinha parda 
Que em janeiro me fugiu 
Quem roubou minha gatinha 
Você sabe? Você sabe? Você viu?” 


Dois meses depois a gata apareceu, miando, magra esfomeada.

Curumins mais inteligentes do que nós na cidade não havia, pois sabíamos brincar, tínhamos quintais enormes e plantávamos bananeiras pros sabiás. Mas não só eu, outros também chorava a falta do pai que viajava muito e deixava-nos “sozinhos” no mundo, cheirando suas camisas, esperando ele voltar. Bem, não ia prá muito longe, mas prá gente era o próprio fim do mundo: Cruzeiro do Nordeste, ou Placas para os mais chegados. Lembro-me que no quintal, Tonho tinha feito uma construção de Placas, tinha as estradas, o posto onde pai trabalhava e brincávamos com carrinhos de latas de sardinhas. Placas era o cruzamento de Pernambuco com a Bahia. Parece que lá havia seiscentos diabos. Segundo o Roxinho. Apelido do meu pai, que lhe deram pela cor arroxeada que pegava pelas raivas que tinha. Por aí se enraivava à-toa com sua diaba de filha que andava sempre correndo mundo, só voltava em casa para comer ou dormir. Isso se alguém fosse buscá-la! 

Chamava-me Cão do Piutá, um cão inventado pelo povo de um lugarejo chamado Algodões, um lugarejo perdido no mundo, aliás, lá ficava a maternidade onde nasceu um de meus irmãos, o Joaquim ( o mano que me nomeou bendito seja não me imagino com outro nome que não fosse o meu. Dá muito certo comigo e muita sorte com os amigos). Era uma palhoça velha e destelhada. Só mãe mesmo, Dona Julinha, prá botar menino neste lugar. Chamavam-na de Corisco, por ser danada e corajosa, enfrentava qualquer macho e não se deixava enganar. Os croques dela pegavam fogo na cabeça, daí a alcunha. Lembro-me um dia, de um tiroteio explodiu na praça. Deram acho que 37 balaços nas costas de um homem, não lembro quem. A mãe do rapaz teve um ataque de paralisia e minha mãe passou no meio das balas deu uma saculejada nas pernas da senhora e falou: “ reaja estão matando seu filho” Isso me deixou vidrada na minha mãe, um amor profundo surgiu neste momento e uma admiração sem fim. 


Pai nasceu de outro lado. Na Tinideira, este nome dado pelas pedras que se tocavam e tiniam ao se chocarem. Ninguém sabe si era sitio ou quilombo. Perdeu os pais cedo, foi criado por uma tia, que jogou ele pela janela e foi cair no chiqueiro dos porcos. E o que dizem. Ficou a dormir nas caatingas sem medo de mugangá. De vez em quando o chamávamos de Zeca-diabo, pois sempre estava dizendo que os seiscentos diachos-andavam-soltos-no-mundo e só traziam infelicidade. Deus que me livre de brincar com estas historias. A família era doida pelo sitio de meu avô, os Coqueiros onde passávamos as férias comendo mungunzá, brincando com as cabrinhas e rindo dos touros que subiam nas vacas no fim das tardes. Era com aboio que meu Tio Né chegava tangendo os bois. Teté levava os borreguinhos para o curral depois dava a mamadeira para um boizinho desmamado que andava pelos cantos sem consolo. Isso enchia meu peito de tristezas. Ficava eu encolhida, ainda mais Aquebrantada que ele. Houve ano em que não pude brincar por ter deixado escapar o canarinho de meu irmão que os criava pra brigar. Briga de canários cruéis. Chegavam até a furar os olhos um do outro nas bicadas. Ele ganhava dinheiro com isso e com o jogo do bicho. Quando nos despertávamos vinha correndo saber o que tínhamos sonhado, fazia-la suas interpretações depois ia jogar nos bicheiros. Claro nunca nos deu um tostão. 

A partir desta época fiquei meio cabreada com a vida. Não sabia si tinha saída ou entrada para o inferno. Só sei que em paraíso nunca pude acreditar. Minha vida atribulada não dava espaço pra isso. Jurei nunca mais voltar lá para não me lembrar das feras que gostavam de apanhar meninos para comer o fígado. Era justamente o Papafigo, bicho manhoso e muito ruim que andava espreitando uma boa presa pros dentes... Depois mudamos de Custódia para Sertânia. A quebra da barra era lá. Tinha vaqueijada, cocada e um preto velho que vendia mungunzá, cantava pelas ruas uma embolada tão ligeira, que ninguém conseguia nem sequer arremedar: “... Olha o coco, sinhá, dona Capitulina mandou me chamar, tem coco tem doce lá vai mungunzá...”.


O que eu não gostava era da escola, pois, obrigavam a gente a aprender coisas que não serviam para vida. Como eu era desobediente, não queria me deixar levar pelo jeito deles me ensinarem. Aprendi sozinha. De repente fui expulsa de uma escola atrás da outra. Finalmente de um pais atrás do outro. Coisa de destino mesmo. Sei lá. Não acredito muito, só que aconteceram tantas vezes que já estava pensando que era maldição. Daí aprendi no mundo coisas de arrepiar e até digo que foi melhor pois aprendi a chorar, cantar versos de viola, dançar feito cabriola, fazer poesia a toda hora e até mesmo a desenhar. Casei uma vez, por obrigação, foi na Argentina, para poder escapar da sanha dos militares que queriam me pegar. Amiguei duas, sem coração. Catei piolho em macaco, trinquei os dentes de lado, para não deixar me matar pela solidão da alma e a tristeza trazida pelos milicos ou mesmo pela saudade que enchia meu peito, já meio estreito de se encolher para não sentir as dores do mundo. 

Esse mesmo moinho foi me empurrando para o lugar que tinha me deixado velha antes do tempo e sem vontade de casar. Quando eu morava em Custódia, me lembro agora gostava de chupar Dedo Adorava. Mãe dizia que eu ia ficar dentuça.isto atraia a maldade dos familiares e mesmo dos amigos que inventavam todo tipo de tortura par ame impedir de ter este enorme prazer. Fernando de Laura um dia me trouxe um couro de tiú e colocou na mão. Nunca mais, foi o maior medo que já tive na vida, fiquei dias chorando e pedindo a minha mãe para cobrir meu dedo com um pano para eu não chupá-lo de noite. Desde este dia jurei nunca me casar. Vá saber por quê! Quando ele vinha em casa, gostava de sentar na preguiçosa, eu ficava arquitetando de como matá-lo acho que até um dia tentei com uma tesoura. A sorte que me alguém me viu e tomou-a. Aí migramos para Recife, já eu andava pelos quatorze anos. 

Sempre aquela mesma tristeza no peito, fingindo rir para não chorar. Mas Recife era Terra boa. Aí me alegrei muito nos tempos das graviolas, das pitangas. Só não fiquei muito tempo, até os dezenove. Estudei uns anos, três, acho. No colégio Pinto Junior. Continuava sumindo dos bancos da escola, das classes. Gostava de alguns professores, mas não dava muito comigo as escolas. Disciplina, força bruta, no final a labuta. Não, não era para mim não. Eu queria viver, sair pelo mundo, conhecer gentes diferentes, fazer revoluções. Mas nessa época nem era muito certeza, que se podia fazer a gente podia sumir devido a revoluções cubana. Tudo era culpa deles, ninguém tinha cabeça pra pensar. Bando de bestas estes militares. Vejam só, tais bestas quadradas, eles mesmos os militares! 


Determinaram nossos destinos, escreveram nossas vidas, estragaram nossa historia com ponta de metralhadora, pau-de-arara, choques elétricos, o resultado foi o exílio, pra mim, pois para outros foi a prisão, a morte, ou o desaparecimento. Coisa mais terrível ficar sem saber onde estão filhos, maridos, pais, irmãos, amigos. Debandei pelo Chile. Golpe de Estado. Tortura, morte e exílio, si um dia pelo menos, eu conseguir fazer uma cantiga. Me sentarei com os versos catarei os mais terríveis e chorarei nos invernos, na terra dos meus amigos. Pois a morte sempre ronda nas vidas da minha vinda. 

Ficamos sem lei e nem rei, de país em país, sem pais, sem paz sem voltar, e Recife lá longe, aperriando para eu não me esquecer, que a terra que nos acolhe não é apraz pra morrer. Existi muito tempo por aí e por ali: depois do Chile, Argentina, parecia praga ruim! De novo prisão, exílio. Uma tormenta sem fim. Mas um dia voltarei, direi o que sei enfim,nunca calarei , saberão com precisão como me tiraram dalí. Sei que muitos anos passaram vinte cinco e alguns dias, esperando a matutinha,vinte e cinco esperando, voltarei para exigir: 

“Me paguem o dinheiro aí, 
vocês estão me devendo 
Quase me tiraram uma vida 
Mas tenho sete a seguir. 
Recife ficou na lembrança 
como se fosse criança 
me enxotando para voltar 
Mas não voltei não deixaram 
E então fiquei por aqui 
Mas o pelo que me cresceu 
Não deixou de caminhar 
Não perdi as esperanças 
Voltei um dia e que dia 
O dia que renasci” 

Depois aterrei na Bélgica, terra que muito me quis por aqui ficarei uns anos e acho que muitos ainda. Talvez não torne a voltar. Quem sabe sim cantarei minha terra dos tucanos, das palmeiras e sabiás? Os versos que aqui gorjeiam de vez em quando vão lá, pescar uma meninice para eu pensar na velhice, que os versos Deus me dará em profusão, como ungüentos para minha alma curar,das saudades, dos enredos dos infernos em que vivi e, tanto lá como cá. 

Meus pais se foram, os manos, salvo João, estão vivos, com muitos sobrinhos para chorar a minha morte, si um dia deixo a eles o que tenho. Se não deixo, não penso que vou faltar. Vão ter que chorar senão não deixo nadinha. Alguém terá que lembrar! Digo assim brincando, no fundo basta eu prá se alembrar. Rimar rima com rima e nas noites me acalentar. 

Não perco os meus manos, volto de vez em quando a vê-los os cueiros encardidos pelo tempo. Me lavo a alma por fim. Me sinto como menina, engatinho e corro a ti, meu negro do Burundi, que me quis como ninguém. Me adimira, me apavora, some volta, me esquece e torna a voltar, como uma ciranda doida, do jeitinho que eu dançava, na ilha de Itamaracá. Fico com ele ainda, já cansei de procurar alguém prá me namorar. Deixa ele ai, um tempo, pois outro não me contém. 

Inêz Oludé 
Bruxelas um dia destes

4 comentários:

  1. Inezita.
    Te classifico como o cometa de Halley:
    Demora para aparecer, entretanto quando se faz a circular o mundo, encanta a todos.
    Este teu texto é um primor de retôrno às origens.
    Apareça sempre e nos brinde com tuas pérolas.
    Fernando Florencio
    Ilheus/Ba

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  2. Mana,
    Que beleza de texto, viajei no tempo povoado de belas lembranças, vamos nos encontrar em no umbuzeira para festajar o São João, estou levando a Vitória para conhrcrt o nosso Sertão e suas origens, vai tmb a Lidia Belo, temos que levar o violão para fazer uma prévia de sua aprwesentação na bienal de Bruxelas.Carlos está tentano levar Rubéns, aí vai ser demais, vamos fazer uma visita a dona Noêmia com a exoeriência dos seus oitenta anos em plena lucidez.
    Joaquim Belo
    Belém/PA

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  3. Quinca.
    Me convide pra essa.
    Rever o pessoal de Né Roberto, não em preço.
    Fernando Florencio
    Ilheus/Ba

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  4. Inezita,
    Esta feliz ideia do PP em republicar matérias já postadas, nos leva a reviver uma fase boa,- as vezes nem tanto - mas boa, da nossa vida.Aproveito para fazer algumas colocações:
    1 - A história do couro do teiú,contou com a conivência de Da.Júlia,do Maninho e do Tona de Chico Eugenio que foi quem abateu o bicho lá pras bandas do cemitério velho.
    Sobre o Jogo do Bicho, uma curiosidade:
    Um médico daqui de Ilhéus sonhou que estava participando de uma sessão na camara de vereadores.Correu para o cambista,- aquele cara que anota os jogos numa banquinha,- e foi dizendo:Zequinha, coloca aí 50 reais no leão mais 50 reais no macaco. O cambista estranhou uma aposta tão alta feita por uma pessoa que normalmente jogava no máximo 10 reais para ajuda-lo. Perguntou o porque daquela aposta. O médico contou o sonho e interpretou, que sonhar com vereador só podia dar Leão, que é quem faz as leis da selva e como os vereadores as fazem as leis dos municipios.Quanto ao macaco, relacionava-se à "esperteza" Tinha tudo a ver a interpretação daquele sonho.Vai perder seu dinheiro. Jogue na BORBOLETA Dr!.Na BORBOLETA porque, estranhou o médico. O que tem a ver BORBOLETA com VEREADORES ? Respondeu-lhe o homem do jogo:
    "É QUE VEREADOR E BORBOLETA NÃO SERVEM PRA MERDA NENHUMA"
    Fernando Florencio
    Ilheus/Ba

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