Custódia, Início dos anos 50, casa dos meus avós maternos, Samuel e Prezalina. O meu avô negociava comprando produtos como ovos, carvão e queijo, dos sítios e fazendas que percorria montado em lombo de burro, e os revendia para o mercado da CEASA do Recife. Lembro de como ele embalava os ovos, colocando-os numa caixa grande de madeira, sobre capim seco, espaçados uns dos outros para não quebrar. Após, colocava outra camada de capim e assim sucessivamente até encher a caixa, a qual seguia para o Recife, sacolejando na carroceria de um caminhão, que rodava pelo menos 2 dias por estrada de terra, até chegar ao seu destino, incólume. A minha avó tinha um “café”, que na época era um misto de lanchonete e restaurante. Servia bolos e doces fabricados por ela mesma e na segunda feira, dia de feira na cidade, ela servia almoço para as pessoas que vinham da zona rural ou de outros municípios para participar desse imenso mercado a céu aberto, que ocupava grande parte da cidade, e era a principal fonte de renda dos pequenos comerciantes.
A casa dos meus avós tinha duas frentes: uma para a Av. Inocêncio lima, que era mais conhecida como a rua da bomba ou simplesmente a bomba, pois era por lá que passava a rodovia e tinha dois postos de combustíveis. Um pertencente a João Miro e o outro a Francisquinho Pires. Nessa frente é que funcionava o café da minha avó e vizinho, a bodega do meu avô. A outra, dava para onde é hoje a Praça Padre Leão. Nessa parte da casa é que tinha as dependências normais de uma residência: sala, quartos, sala de jantar. Em frente da casa, um imenso quadrilátero de terra, vazio, constituía o que chamávamos o quadro da rua. Era costume designar como “a rua”, o centro da cidade, o local onde existia comércio, bares, igreja, o local onde regularmente a população se reunia para algum evento. O “quadro da rua” de Custódia, era um retângulo, com uma leve inclinação, constituído de casas estreitas, geralmente de uma porta e uma ou duas janelas também estreitas, dando diretamente para a calçada e coladas uma à outra. Não me lembro de alguma casa ter um espaço frontal destinado a plantação de flores à guisa de um jardim.
Em cima da calçada, geralmente largas, havia árvores da espécie fícus benjamina, cuja copa dava sombra que refrescava a frente das casas no período de muito calor e onde os moradores dos sítios amarravam os animais de montaria quando vinham à “rua”, comprar algum mantimento ou remédio. Alguns anos mais tarde essa espécie de árvore teve que ser cortada por abrigar em sua folhagem um inseto popularmente conhecido como potó, cujos fluídos em contato com a pele humana provoca queimadura e o surgimento de bolhas muito doloridas. Em um dos lados menores desse retângulo, na parte mais alta, erguia-se e ergue-se imponente a igreja matriz de São José, com sua bela torre, cujo sino fazia a chamada para as missas, anunciava a morte de alguém, repicava alegremente nas festas do padroeiro e até em uma determinada época posterior, anunciou as 9 horas da noite, comandado por Sebastião, o sacristão e ordenado pelo padre Luiz Klur, cujo intuito era avisar aos jovens que era hora de se recolherem aos seus lares, principalmente àqueles que namoravam nos degraus da igreja.
Em frente à igreja, estendia-se um imenso descampado de terra nua. Esse descampado era dividido ao meio por uma fileira de postes de madeira, que ia da igreja até o lado oposto. Os postes eram encimados por arandelas de onde pendiam lâmpadas de pouca potência que, iluminavam pouco mais que um círculo cujo diâmetro não era superior à sua altura. Completavam a iluminação, postes colocados rente às calçadas, próximos das casas. A baixa qualidade das lâmpadas era o que havia disponível na época, aliada a pouca potência do gerador que fornecia a energia elétrica. À noite, o quadro da rua era imerso numa penumbra. Eram raras as pessoas que saiam de casa após o jantar. Distinguiam-se grupos de crianças que brincavam correndo, fazendo alarido ou um adulto que ia à farmácia comprar remédio para dor de dente. À “boquinha” da noite, em torno das 18 horas, todos se recolhiam para o jantar que era realizado com a família toda reunida em torno da mesa. Sopa de feijão com macarrão ou canja feita com as sobras da galinha do almoço, cuscus ou xerém com leite ou ensopado com o caldo da galinha, arroz doce, jerimum de leite amassado com o garfo e imerso no leite, imbuzada na época de imbú, canjica e pamonha na época de milho verde, ou simplesmente ovo, pão e café. Esse era o cardápio da imensa (nem tão imensa assim) maioria dos custodienses. Nesse aspecto, vivíamos em uma comunidade socializada.
18 horas era o marco de transição entre o dia muitas vezes luminoso, quente e seco e uma noite amena e estrelada. A conta da energia era cobrada pela quantidade de pontos de luz que havia na residência. Por isso, muitas famílias tinham pontos de luz apenas em alguns cômodos e ao anoitecer acendiam os candeeiros que também tinham a sua vertente econômica. Os mais pobres usavam um candeeiro feito de folha de flandres (lata), em forma de cilindro soldado em um funil invertido. Abastecia-se o candeeiro com querosene, colocava-se um pavio de algodão torcido, pelo furo do funil que ficava umedecido pelo querosene. Com um fósforo acendia-se o pavio que fornecia uma chama proporcional ao comprimento do pavio que ficava para o lado de fora. Os que tinham condições, adquiriam uma lamparina, cujo princípio de funcionamento é o mesmo do candeeiro, porém de aspecto mais harmonioso: o recipiente para o querosene era fabricado em vidro ou louça e a chama fornecida por um pavio de algodão trançado, além de ser protegida por uma manga (cilindro de vidro transparente) que irradiava a luz com mais eficiência e poder ser controlada por um dispositivo externo que aumentava ou diminuía o comprimento do pavio.
2 - ACENDENDO ESTRELAS
Quando o meu avô viajava, minha mãe me mandava ficar com minha avó. Tinha eu por essa época, uns 9 ou 10 anos e era cheio de alegria que eu ia para o paraíso dos bolos e doces. Raspar as panelas era a melhor diversão que eu poderia ter e eu fazia essa tarefa com competência. Ela, cansada da labuta do dia, ia dormir cedo da noite. Começava para mim outra atividade das mais prazerosas: a observação do firmamento. Começava com as últimas réstias de luz do dia. Lá próximo ao horizonte ia-se acendendo a estrela D’Alva. Com o avanço da noite, esta ia ficando maior e mais brilhante, resplandecendo. Alguns anos depois vim a saber que a Estrela D’Alva não era uma estrela, mas sim o planeta Vênus. A minha admiração por aquela estrela brilhante não diminuiu. Aumentou a minha curiosidade e daí a indagação: -haverá habitantes em Vênus? -Será que eles estão olhando para nós agora? -Que aparência terão? Logo após o jantar, eu armava a espreguiçadeira na graduação máxima para ficar quase deitado e a colocava na calçada, em frente da casa. Deitava-me e começava a observação. Descobri que uma estrela que se apresentava com um brilho avermelhado, diferente das outras, também não era uma estrela mas sim o planeta Marte. A curiosidade outra vez aguçava a imaginação .
-Será que os marcianos são realmente uns homenzinhos verdes e tem antenas como aparece no cinema?
As Três Marias eram as estrelas mais evidentes no céu. Em linha reta, com espaçamentos iguais e ambas brilhantes, bastava olhar para cima e logo as distinguia. Também vim a saber que essas três estrelas faziam parte da Constelação de Orion. Formam o cinturão da figura. O Cruzeiro do Sul é outra constelação fácil de se ver. Formada por 5 estrelas. 4 formam a cruz e uma quinta estrela com pouco brilho, aparece abaixo do braço direito da cruz e por isso é chamada de Intrometida. O Cruzeiro do sul aparece próximo ao horizonte sul, e seu braço maior aponta para o polo sul. Serviu de orientação ao navegador Fernão de Magalhães em sua expedição de circun-navegação do globo terrestre. Em sua homenagem, foi dado o seu nome (Estrela de Magalhães), à estrela α (Alpha), a inferior e mais brilhante do braço maior da cruz. Aprendi lendo que, seguindo a direção do braço menor do Cruzeiro do sul, da direita para a esquerda, e à distancia de duas vezes o seu comprimento, encontramos a estrela Alpha Centauri , que faz parte da Constelação do Centauro e é a estrela mais próxima do nosso sistema solar.
À medida que a noite avançava, as luzes da iluminação da praça já não atrapalhavam muito, mas quando essas se apagavam, entre 9 e 10 horas, havia uma explosão de luzes no céu. Acontecia então uma sublimação. Eu, criança, inconscientemente me concentrava naquele esplendor e flutuava. Despregava-me da espreguiçadeira e levitava ao encontro dos astros, flutuando em unicidade com o universo.
O tempo passa. No início dos anos 60, chega a energia elétrica gerada pela Usina de Paulo Afonso. A iluminação das cidades melhora com a invenção da lâmpada de vapor de mercúrio. A qualquer hora pode-se acender uma lâmpada e os aparelhos eletrodomésticos começam a aparecer nas casas. Com a forte iluminação das ruas a observação do céu à noite não era mais possível. A maioria das crianças nascidas na cidade a partir dessa época não conhece a beleza de um céu noturno. Eu também passei a me interessar por outras coisas.
Já adulto aprendi uma técnica de relaxamento eficiente e aliei essa técnica com a audição do álbum Meddle de Pink Floyd, culminando esse transe com a música Echoes. Creio que atingia o estado alfa de concentração e voltei a levitar, meu corpo descolando do chão e o meu espírito se elevando até as alturas conforme cada estágio da música. É impossível descrever as sensações desses 22 minutos de duração da audição.
3 – O ESPETÁCULO
Na metade dos anos 80, eu morava na cidade do Rio de Janeiro. Os meus dois primeiros filhos eram ainda pequenos. Fui convidado por um amigo a passar o feriado da Semana Santa na cidade de São Lourenço uma estância hidromineral do sul de Minas Gerais. No sábado de aleluia, ele me convidou para irmos à cidadezinha de Aiuruoca, no alto da Serra da Mantiqueira, a 989 metros de altitude, ao pé do Pico do Papagaio, onde ele queria visitar um parente. A estadia nessa cidade de casas antigas, ruas ladeirosas e uma igreja construída em estilo barroco, foi agradável, principalmente pela beleza dos cânticos antigos da celebração dos ritos da Ressurreição de Jesus.
Resolvemos voltar para São Lourenço, naquela noite mesmo. Já tínhamos saído da cidade há algum tempo e nos encontrávamos na parte mais alta da região a uns 1000 metros de altitude, quando de repente o nosso carro foi invadido por um turbilhão de luzes. Estrelas entravam pelo para-brisa, pelas janelas, dançavam dentro do carro. Meio atordoado e extasiado parei o carro no acostamento e desliguei os faróis. Então me deparei com um espetáculo que poucos têm oportunidade de ver. Miríades de estrelas faiscavam no céu como se todos os diamantes escondidos nas profundezas do solo das Minas Gerais houvessem numa gigantesca erupção sido pregados na abóbada celeste. Apesar de a lua não está aparente, a luminosidade era suficiente para enxergarmos a estrada e as árvores do contorno. Estrelas cadentes riscavam o céu. Creio que naquela noite, Deus estava fazendo uma demonstração de como foi o 4º dia da criação do mundo.
Dizem que quando alguém vê uma estrela cadente, deve fazer um pedido, que ele se realizará. Creio que naquela noite, devo ter pedido para ser feliz. E fui atendido.
Vitória-ES, 11/05/12
Belo retorno às origens, Jailson.
ResponderExcluirDe carona, viajei com você no saudosismo desta crônica.
Abraços.
Fernando Florencio
Ilheus\Ba
Que texto legal, parabéns primo, por lidar tão bem com as palavras. Como temos avós em comum, também me transportei até a aconchegante e acolhedora casa de vovó Preza. Abração
ResponderExcluirJailson parabéns pelo belo texto.fui invadido por uma sensação de nostalgia. Abraços!
ResponderExcluirEita Jailson, você me fez viajar no tempo. Até o cardápio você lembrou. Rsrsr. Eu também era encantada com as estrelas e na minha imaginação infantil achava que Deus todo poderoso jogava um manto gigantesco bordado com estrelas cintilantes sobre a terra e isso era a noite. Era poesia e os movimentos de rotação da terra para mim não existia. A estrela que você cita eu tinha a pretensão de dizer que era minha e inventei o nome para ela: Dalbanita.Uma mistura de Dalva da estrala,Nita da minha mãe Nita e de bonita. Era um farol no céu que eu costumava ficar olhando sentada no batente da cozinha. Era magia, era pureza e poesia....
ResponderExcluirParabéns primo Jailson! Bela descrição de bons tempos vividos, é uma verdadeira viagem ao tempo 👏👏
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