O CASARÃO AZUL
José Soares de Melo
A imagem ficou para sempre fixada na minha memória. Da estradinha dava para ver nitidamente aquele majestoso casarão azul, no topo de um monte, tendo ao lado direito enormes pedras e em uma delas um Cruzeiro abrindo seus braços para a vastidão à sua frente, e ao esquerdo uma vasta várzea, sempre verde com seu arrozal permanente, que atraia centenas de galos de campina e outros pássaros.
Na ingenuidade dos meus oito anos, não concebia o que se passava naquele casarão. Nem porque meus pais não permitiam que eu, como todas as crianças da família e da redondeza, frequentassem aquela casa, mesmo sendo seus donos os meus bisavós. Só anos mais tarde é que fui compreender a proibição. O motivo era a minha própria bizavó, a quem todos os seus bisnetos chamavam de Madrinha Benvinda.
Era uma senhora já chegada nos anos, alta, morena, cabelos brancos, sempre vestida com longos vestidos floridos à moda das ciganas, e amparada em um bastão. Todos os dias se dirigia à cidade, mesmo sem ter nada para fazer lá. Era o tormento de meu bizavô, Batistinha, cujo nome combinava perfeitamente com sua estatura. Baixinho, moreno, uma fera no trabalho.
Madrinha Benvinda sofria das faculdades mentais, e vivia perambulando todos os dias pelas ruas da cidade, soltando impropérios contra tudo e contra todos. Só voltava para casa já tarde, sempre reclamando de tudo. Aliás, Cacimba Nova tinha fama de ser terra de doido, muito mais por ser a localidade mais densamente povoada na região, e obviamente concentrar alguns doentes mentais. Entre eles, Madrinha Benvinda, e Chica Doida, e outros que se não aparentavam doença mental, eram praticamente deficientes: entre esses, Zé Bogó, e Manoel Bogó, irmãos, cujo apelido Bogó vinha dos inseparáveis sacos dependurados a tiracolo, com toda uma parafernália para suprir o vício do fumo: o fumo, a palha de milho para enrolar o cigarro, o quicé para picar o fumo, o “tabaqueiro” que vinha a ser o mais antigo isqueiro do mundo. Consistia em uma ponta do chifre de boi, devidamente raspada e polida, munida de uma tampinha feita de cuia, recheiada de algodão, com um acessório preso ao tabaqueiro, que era chamado de fuzil. Tratava-se de uma pequena haste de ferro, usada para acender o tabaqueiro. Acender o tabaqueiro exigia treinamento. Segurava-se o dito cujo entre os dedos indicador e polegar abertos, juntamente com uma pedra, geralmente preta. Aí vinha a tarefa mais difícil: com o fuzil, raspava-se a pedra com movimentos vigorosos, tirando faíscas de fogo que caíam sobre o algodão, provocando o fogo. Aceso o “pacáia” (cigarro de fumo), era só tampar o tabaqueiro que a ausência de ar provocava o seu apagamento.
Zé Bogó era um caboclo forte, gordo, baixo, e tinha a fama de ser o mais preguiçoso da família e da região. Nunca deu um dia de trabalho a ninguém. Vivia pedindo a um ou outro, sempre, uma ajudinha.
Já Manoel Bogó – também conhecido por “Mané Migué” era chochinho, extremamente baixo, mirrado, porém era um exímio trabalhador. Competia na agilidade, na limpa de mato, com muitos caboclos altos e fortes.
Ambos mal abriam a boca. Sempre calados, pensativos, como se estivessem meditando.
Chica Doida era a mais agitada de todos. Sempre esmulambada, por vezes ficava seminua, correndo pelas ruas e estradas da região. Pouco vinha à cidade, diferente de Madrinha Benvinda.
Voltando ao meu bizavô, Padrinho Batista para todos os netos e bisnetos, como já disse, era uma fera no trabalho. Pai de uma enorme família, levou todos eles ao trabalho ainda jovens. Joaquim Batista, José Batista, Manoel Batista, Anísio Batista, Chico Batista, juntamente com minha avó, Maria Batista, foram todos encaminhados ao trabalho logo cedo da vida.
Em frente ao casarão azul de Padrinho Batista, do outro lado da estrada e às margens do Riacho Marrecas, havia uma enorme olaria, onde a família trabalhava constantemente. Tijolos, telhas e ladrilhos eram fabricados com esmero. Um grande forno também servia a meninada, que aproveitando a sobra do barro confeccionava bois, cavalos, bonecos, e quando havia a queima de telhas, colocava lá no forno e saiam vermelhinhos, bonitos mesmo. Também as mulheres fabricavam panelas, bacias, jarros e outros utensílios doméstico para uso próprio.
Durante toda a minha infância, mesmo quando morava na cidade, sempre ia brincar no sítio do meu bisavô, onde ficava a Olaria. Bananeiras, goiabeiras, mangueiras e praticamente todos os tipos de frutos da região abasteciam a família. Em todo esse tempo, nunca vi Padrinho Batista zangado, salvo uma vez em que um dos seus netos ou bisnetos estavam atrapalhando a correria dos trabalhadores com enormes bolos de barro nas mãos para colocar nas formas de tijolos. Mesmo assim, apenas mandou que todos nós fôssemos brincar noutro lugar.
Não consigo lembrar os últimos dias de Padrinho Batista e Madrinha Benvinda. O tempo apagou de minha memória essa fase da vida.
Mas acompanhei sempre a vida da família. Adolescente, sempre ia as festas de São João, promovidas por Zé Batista, na sua imensa casa, com cerca de doze janelas na sala de visitas. Era um animado forró, sempre animado pelo maior tocador de oito baixos da região: Manoel de Oscar, pai do Sanfoneiro Antônio Marcelo, com quem cheguei a compor uma música gravada e não lançada. Era o mais autêntico Forró pé-de-serra que existia. Vinha gente de toda a região, o terreiro ficava lotado de caboclos animados com os festejos de São João.
Muito batalhador, Zé Batista – ou Tio Zé, como eu chamava, adquiriu uma das melhores casas de Custódia – à época, e continuou com sua fazenda em Cacimba nova, vendendo-a depois a Seu Né da Barra. Já na cidade, iniciou a Rua Dr. Fraga Rocha, construindo uma garagem, uma das primeiras edificações daquela rua. Quando perguntavam porquê uma garagem, ele dizia que tinha planos de comprar um caminhão, sonho quase impossível para a grande maioria dos habitantes de Custódia naqueles tempos. Sonho realizado, foi o primeiro comprador de uma caminhão zero quilometro da cidade.
Mas Zé Batista queria mais. Foi o pioneiro no ramo imobiliário, construindo um grande número de casas e revendendo-as. Acredito que ninguém até hoje construiu mais casas em Custódia que Zé Batista, a despeito da fama de má qualidade dos imóveis, muitos deles até hoje de pé.
Como caminhoneiro, Zé Batista viveu momentos inusitados. Contam que para economizar, durante as viagens ele protelava o horário do café da manhã, até que chegasse a hora do almoço, economizando assim a despesa do café dele e do motorista. Dizem que certo motorista aprontou com ele. Antes de saírem de manhãzinha, o motorista fez um café da manhã super reforçado, sem Zé Batista saber. Já depois das dez horas, Zé Batista estranhou o motorista não ter reclamado do horário do café perguntou se ele queria tomar o café, tendo o motorista respondido que já estava perto do horário almoço, portanto é melhor esperar. E tome estrada, até que lá pelas duas horas Zé Batista pediu para ele parar para almoçar, tendo o motorista pedido para ir mais para a frente. Morto de fome, Zé Batista aguentou até mais ou menos quinze horas, quando almoçaram. A partir daí, nunca mais ele protelou o horário do café.
Os filhos de Zé Batista – Zezinho, Bidó e Biu, se tornaram caminhoneiros, apenas Ozório não abraçou a profissão.
Bidó contava casos curiosos na sua vida de motorista. Contava que certa feita foi pegar uma Nota Fiscal de uma carga de cimento no Grupo João Santos, junto com Zé Batista. Subiram de elevador, e quando Zé Batista olhou pela janela e viu que estavam a mais de 30 metros do solo perguntou:
-“Oxente, Bidó, como foi que gente chegou aqui sem ter subido em escadas?”.
Já Ozório contava rindo que quando Zé Batista construiu uma casa no final da Av. Manoel Borba, de frente para a BR 232, instalou uma lâmpada vermelha na frente da casa, como ornamento, tendo Ozório advertido:
-“Pai, com essa luzinha aí, daqui há pouco vai ficar cheio de caminhoneiro querendo vir praqui, pensando que é um cabaré!”.
Outra grande paixão de Zé Batista era o Bacamarte. Na gestão de Luizito na Prefeitura de Custódia, que muito apoiou as manifestações folclóricas, Zé Batista chegou a reunir um batalhão de mais de duzentos bacamarteiros, para as festividades de inaugurações que sempre ocorriam naquela época de ouro da cidade.
Esse o Zé Batista com quem convivi, junto aos demais familiares.
Já Anísio Batista – Tio Anísio, o qual o Fernando Florêncio tão bem retratou, era uma pessoa mais recatada, mais ligado ao comércio. Convivi pouco com ele. Nos seus últimos anos, comercializava uma banca de “mangáio” bem em frente à casa de meu sogro, Adamastor, na Rua da Várzea, e parecia não me reconhecer, pois diversas vezes falei com ele e como não tomava a “benção”, acredito que ele não me reconhecia. Tinha alguns filhos, Joãozinho, Sizenando, fora as mulheres, cujo nome não recordo.
Dos demais, apenas acompanhei a vida de Chico Batista, o mais rápido pedreiro que Custódia já teve. Tinha uma capacidade enorme de “assentar tijolos”, construindo pequenas casas em poucos dias.