Li uns escritos do Jorge Remígio no blog. Coisas que nos remetem ao mais profundo mundo das lembranças e geram saudades. Retratam bem a Custódia da nossa época. Quando digo “nossa” refiro-me à época vivida pelos sessentões ou a aqueles que estão a caminho.
Existem custodienses da “gema” que originaram fatos enriquecedores, histórias (e estórias) que tão bem relatadas são inseridas no Blog Custódia Terra Querida, levando Jussara Burgos, Zé Melo, Jorge Remigio e este humilde escriba, à condição de arquivos vivos de uma fase bonita, criativa, eivada de fatos marcantes, sérios e hilários da vida na nossa cidade. Só que em Custódia o único arquivo vivo chama-se Dr. Pedro Pereira Sobrinho, até prova em contrário.
Se Pedrinho resolvesse escrever suas memórias, o livro teria a espessura e um número de páginas idênticos (se não mais) correspondente à espessura e número de páginas de uma lista telefônica do Estado de São Paulo. Isto quando existiam listas telefônicas.
Nada mais justo, conceder um preito de gratidão por terem gravado a história de Custódia nas mais remotas lembranças da nossa existência, tanto assim que estamos aqui a relatá-los e levá-los ao conhecimento desta nova geração, a quem cabe sequenciá-los, não os deixando a vagar pela poeira da estrada da vida.
ZÉ BIÁ.
Pequeno homem na estatura, mas de um coração gigante. Deleitava todos nós com as músicas e o som ingênuo tirados da Zabumba e do seu “pife”. Era bonito ver Zé Biá tocar. Cada um de nós pretendia ser um Zé Biá, imitando-o tentando ser um dia um zabumbeiro soprando um “pife” improvisado feito da haste ôca da folha do mamoeiro. Por questão de justiça, rendo a todos os zabumbeiros, minha admiração, respeito e homenagens. Apesar das “pingas” que tomavam de bodega em bodega, faziam um som limpo. Nunca desafinavam.
ALAÍDE SILVA CARVALHO.
Negro gigante de sorriso largo. A abertura do nosso carnaval na madrugada do sábado, o vozeirão do Alaíde, acordava toda acidade entoando o canto de partida:
“LA VEM O CARIRI AÍ, CANSADO DE PEGAR CRIANÇA, PEGANDO AS MOÇA SOLTEIRA PEGA TUDO QUE A VISTA ALCANÇA...”(sic)
Indicava que estava aberta a temporada carnavalesca e liberado o “*entrudo”.
Nos dias atuais, Alaíde seria nosso Rei Momo com todas as honras e glórias possíveis e imagináveis.
(*) ”Mela mela”. Sujar as pessoas de água, talco e outras ingredientes menos recomendados e não identificados.)
NAIME CAMPOS.
Naime tem na sua história a quebra de um tabu, que só viria a ser usual depois de muitos anos. O paradigma de homem se vestir de mulher, com peito e tudo, falando fino, sair rua a fora, bodega por bodega, venda por venda, bar por bar, foi quebrado por Naime.
Todos os anos, durante a segunda- feira de carnaval, saía Naime travestido de mulher, a faturar os trocados para a cervejinha da noite.
Creio que em todo o mundo machista do vale do Moxotó, tamanha ousadia até então ninguém tivera coragem de assumir.
Pintado de preto, cabeça raspada a navalha, trajado com algum vestido emprestado por uma das irmãs, na segunda feira de carnaval, lá vinha o Naime “arrecadando” a grana das cervejas da noite que seriam tomadas no bar do Clube Lítero Recreativo de Custódia. Naime descolava uma graninha esperta. Detalhe:
Nunca deixava ninguém lhe passar as mãos “nas partes”. Nem na frente nem atrás.
FILOTANDO.
Naime com sua verve séria, porem sempre cômica, nos brindou com esta pérola que passo a relatar.
O forró mais animado e mais popular do São João, em Custódia, acontecia no Bar de Zuca Pinto, situado, creio que na esquina da rua Luiz Epaminondas com a Praça Padre Leão. Do outro lado o casarão do avô de Pedrinho Pereira. Aquela rua que sobe e vai até a cadeia pública. Era mesmo um forró para o povão.
O sanfoneiro sempre foi “Mané” de Oscar, porém naquele São João, tendo compromisso já assumido lá pras bandas de Betânia, Mané passou a bola pra Alípio.
Alípio um negro simpático, cheio de ginga, namorador, tocava uma sanfoninha com
“oito baixos” de dar inveja. Fazia miséria com aquele fole chamado jocosamente de “pé de bode”. Repertório limitado, Alípio a cada duas músicas repetia sua preferida e única que sabia a letra até o final:
“O candeeiro se apagou, o sanfoneiro cochilou, a sanfona não parou e o forró continuou...”
Forró no Escuro. Clássico de Luiz Gonzaga.
Sebastião “Leriano”, (Leriano: Não se sabe se é uma corruptela de “Aureliano” ou por causa de “leriado”, sinônimo bastardo de conversador) era o mais assíduo frequentador de todos os forrós onde Alípio tocava. Sempre de terno de linho impecavelmente amassado, Sebastião era apelidado de o “Pombo Branco”, apesar de ser da cor negra. Ozinaldo e Alfredo também se faziam presentes nos forrós tocados pelo Alípio, cuja profissão real era ser sapateiro.
Sebastião “Pombo Branco”, sempre tirado a falar difícil, certa feita perguntaram-lhe:
Então Sebastião, como foi o forró de ontem lá no Quitimbú ?
Rapaz! O forró esteve uma DIOCESE de tão bom! Respondeu o simplório Tião Leriano.
Naquele forró do dia de São João no bar de Zuca, a mesa da sinuca foi encostada no canto do salão e sobre ela, servindo de palco:
Alipio (nos oito baixos) João Kaki Oito (no violão) Zezin Calango (no pandeiro) Avião de Alcides (no triângulo) e na zabumba Chico Deca, que logo após viria a morrer num acidente de caminhão.
Aquele forró transcorria muito animado, com muita calma, até aquele momento nenhuma arma, principalmente peixeira, tinha sido tomada. Cautelosamente, sabendo que na entrada do baile o Cabo Deodato mais dois soldados estariam de plantão dando uma corrigida geral nos frequentadores, e quem estivesse armado, teria a arma apreendida, então, por precaução, e para não passar vergonha, as armas foram deixadas em casa ou escondidas em algum buraco de muro ou moita de mato. Todos sabiam que o Cabo Deodato não brincava em serviço, dizia ele que do lado que era liso era um ralo, do outro esporão de galo. Cumprindo as ordens do Coronel Manoel Neto, então, quem quiser que se habilitasse. Era cana dura.
Uma moça morena e muito bonita estava no salão. De visita à cidade, chamava a atenção da rapaziada. Não era conhecida em Custódia e com certeza devia ser convidada de alguma família. Era junho, portanto devia estar de férias.
Sentada e bem comportada no canto do salão, sempre observada com muita curiosidade.
Zezin de Chico Barra, com um medo da gota serena, pois a moça poderia estar esperando o namorado e seria confusão na certa, mesmo assim encheu-se de ousadia, meteu a cara e foi tirá-la pra dançar.
Voltou para onde estávamos, dentro do bar tomando Samba em Berlin (Rum Montilla com Coca-Cola) e com a maior cara de Amélia nos disse que a moça lhe “cortara”. Dissera ela:
“-Não posso. Eu só danço filotando”...(?)
Aquilo nos deixou encabulado.
Hermes Leandro, exímio dançarino, conhecido pelas qualidades de um Pé de Valsa, levou também uma “cortada” da moça:
Ela só dança “filotando”. Voltou o Hermes dizendo cabisbaixo e invocado. Como seria aquela dança? Questionávamos nos todos.
Depois de mais dois ou três serem “cortados”, aí entrou o Naime na história.
Sob nossa curiosidade, o Naime atravessou o salão de lado a lado, disposto a dar o famoso cheque- mate na dama de fora que só dançava “filotando” e que já cortara uns cinco.
“Se não dançar comigo agora, esta noite, não dança com mais ninguém. Está cansada, vá simbora”!!
Não precisou tal grosseria. Naime foi educado e a moça correspondeu explicando com ponderação, como se vê a seguir.
Naime chegou até a moça com gosto de gás e abriu o verbo:
Fique a dona moça sabendo que eu paguei a quota (entrada) e quero dançar. Eu danço de tudo:
Xote, Côco, Baião, Xaxado, Reisado, Bolero, Samba-Canção, Samba de Roda, Mambo, Tango, “filotando”, sem “filotar”, assim, quero dançar com você. Escolha.
A pobre moça, constrangida, só respondeu:
Moço eu só danço filotando. E esclareceu o mistério:
É QUE FILÓ É MINHA TIA. ESTOU HOSPEDADA NA CASA DELA. COMO NÃO SOU DAQUI, ELA ME PEDIU PRA SÓ DANÇAR QUANDO ELA CHEGAR.
ASSIM, EU SÓ DANÇO FILOTANDO.
ME DESCULPE!
Naime retornou murcho igual maracujá engavetado. Não disse palavra. Nem podia. O motivo para a moça não dançar carecia apenas de explicação.
Fernando Florêncio
Ilheus/Ba (02/11/2011)