17 outubro, 2021

O Filme (Reminiscências) - Por Jorge Remígio


Custódia, o ano era 1963, eu tinha 8 para 9 anos e a Praça Padre Leão era da meninada, como o céu é do avião. Como era comum à época, vivíamos brincando na rua, e naquela manhã clara de um sábado ensolarado, a molecada enchia a praça com brincadeiras que hoje é passado. Para citar algumas, como era bom o preso a favor. E o garrafão? Sentir toda aquela adrenalina do perigo de levar porrada, mas, também o gostinho de poder dar também, era excitante. Jogar bola descalço no calçamento, sem se importar com o perigo que o dedão do pé corria, guerrear com índios, bandidos e mocinhos, jogar bila; pião; puxar carros de madeira; apostar corrida de prado; “boquinha de forno, forno, jacarandá, já, quando eu mandar?, vou. E se não for? Bolo. Sinhô rei mandou dizer, que fossem na bodega de Sêo Joventino e pegassem um punhado de farinha” Era o máximo. Toda essa miscelânea de entretenimento, se completava com o filme de final de semana, exibido no cinema de ZEDIZAIAS, se não me falha a memória. Ficávamos esperando ansiosos a colocação dos cartazes à frente do passeio público, entre o clube e o Bar Fênix


Naquela manhã, corri para ver os cartazes já postos. Ao chegar, ofegante pela disparada, tive que esperar duas adolescentes terminarem de admirar as cenas em fotografias, para me deleitar também na imaginação, já prevendo um filme imperdível naquela noite. Uma das mocinhas, era Lourdinha Leite, irmã do meu amigo de presepadas, Chico Elizeu, a qual fez um comentário, no mínimo, inusitado para a colega. Disse: “EITA FILME BOM DA GOTA, ESSE EU NÃO PERCO, NEM QUE O CÃO BOTE O RABO NO MEIO”. Achei a coisa mais interessante daquele dia. Quando as mocinhas saíram, fiquei esperando os parceiros chegarem, para poder plagiar aquela pérola. Não demorou três segundos, lá estavam os contemporâneos, num misto de algazarra e observação. Esperei um momento certo, para fazer o meu brilhante comentário. Aí sapequei: “EITA FILME BOM DA GOTA, ESSE EU NÃO PERCO, NEM QUE O CÃO BOTE O RABO NO MEIO”. Não modifiquei nem uma vírgula. Ôba! À noite chegou. Como de costume me dirigi como um raio até a Bomba, não era chamada de rua, era simplesmente BOMBA. Isso, devido ao Posto Shell de Sêo João Miro e ao Posto Esso, que pertencia a Sêo Adauto Pereira, avô de Paulo Peterson. Ele era muito amigo do meu pai.

Tenho boas lembranças de minha infância naquele local, que vivia em constante movimento, efervescente, parecia está desconectado de uma Custódia calma e bucólica nos primórdios anos sessenta. Caminhões passando, carros abastecendo, ônibus parando nos hotéis dos postos, ou no Hotel Sabá, que era de Sêo Amaro e Dona Maria, pais de Gerson Gonçalves, ainda tinha o hotel de “Zabé de Câinda“, Café da Hora de Minu, irmã de Sinhá GóisFarmácia Galeno de Zé Burgosoficina de Luizinhobodega do meu avô Samuel Carneiroarmazém de Adão, borracharia de Júlio Bernardo, carinhosamente chamado de Júlio Buchudo. Queria citar um detalhe. Colado ao posto do Sêo Adauto, havia um barzinho, pequeno, mas aconchegante, onde o meu pai Claudionor Remígio, costumava tomar cervejas com os amigos. Lembro de Chico Eugênio, Antenor, não sei se Zé de França, mas, me recordo bem que quem atendia no bar, era um rapaizinho magro, moreno, recém chegado da Maravilha, chamado Airton. Muitos anos depois, ele conquistou um título merecido, é o Dr. Airton.

Uma coisa me intrigava naquela época, mexia com o meu raciocínio lógico de criança de 2ª infância, quando ouvia motoristas ao cruzarem com colegas, perguntar: “tá subindo ou descendo amigo?” e o outro responder. “tô descendo” apontando ou dirigindo o olhar para aquela ladeirona , que começava logo após o posto fiscal. Como descendo, se tinha que subir a ladeira para ir ao Recife. Sim, voltando ao FILME, comecei a procurar o meu pai, encontrando-o embaixo do seu caminhão Chevrolet. Acho que a bronca era grande, ele estava com Antônio de Ana, que o ajudava segurando um bico de luz, que alumiava alguma parafuseta. Pelo semblante, observei que ele estava nervoso. Coisa rara, pois ele era uma pessoa calma.

Então, me abaixei e falei uma frase que já havia sido repetida em mil sábados. “Pai… me dar dinheiro pra eu ir para o filme“ Ele de pronto, contrariando todo um histórico favorável, disse incisivo e forte “NÃO! vá para casa menino” Aquilo me causou calafrios, gelei, engoli seco, tentei me enganar fingindo não ter ouvido nada e tornei a repetir a mesma frase, porém, já sem muita segurança. “Pai, me dar dinheiro para eu ir para o filme”. Aí ele foi grosso mesmo e falou quase gritando. “MENINO! vá para casa, senão você apanha“ Não havia mais espaço para argumentar nada. Fiquei sem ação, sem querer acreditar no que estava ocorrendo, aquilo fugia a tudo o que eu poderia imaginar naquela noite. Saí cabisbaixo, contornei o final da Rua do Rio (Rua Tenente Moura), passei ao lado dos Correios, ao pegar a Rua Padre Leão em frente à Prefeitura, onde hoje fica o Banco do Brasil, veio-me a mente aquele estalo, levando-me de volta a bendita manhã daquele sábado ensolarado. EITA ! foi o danado do cão. Será ? Hoje seria mera conscidência, mas, para uma criança do interior, no início dos anos sessenta, onde tínhamos uma ideia real do inferno, sem nunca ter andado por lá, o fato ganha outra dimensão.

As histórias de almas penadas, casas “malassombradas”, causavam pânico nas crianças, a sociedade praticava um catolicismo quase arcáico e de hegemonia total sobre outras religiões, que quase não existiam na cidade. A ideia do inferno ficou mais aguçada e também mais aterrorizante em mim, quando após uma aula de catecismo ministrada na matriz de São José, por Dona Maria de Sêo Ernestomãe de Zezita e Gracinha Queiróz, esta convidou todas as crianças até a sua residência, que ficava por trás da casa paroquial, onde seguimos em fila indiana até o casarão.

Lá, foi apresentado às crianças, um livro muito grosso, com gravuras em bico de pena, onde a meninada, pávida e atônita, viam rios de sangue fervente, onde ardiam os culpados de violência contra o próximo, chuvas de brasas, almas penadas se contorcendo, nuas em um fogo abrasador, outras eram açoitadas por diabos com tridentes, torturadas por serpentes enroladas nos corpos nus…que cenário, hein? Muitos anos depois, descobri que aquele livro grosso, era A DIVINA COMÉDIA do poeta e escritor italiano Dante Alighieri (1265-1321). Todas essas imagens atormentavam a minha mente, até que fui despertado por um moleque, que me tirou daquele quase transe. “ÔXE, TU NÃO VAI PRO FILME NÃO É? “e eu mentindo disse: eu ainda vou em casa. Naquela noite demorei a dormir, olhando para o telhado ou rolando de um lado para outro da cama. E o pior de tudo, ainda estava para acontecer. Foi quando pela manhã do domingo, logo cedinho, os amigos correram até a minha casa na Padre Leão nº 12, e me contaram com detalhes minuciosos, O FILME.

Por Jorge Remígio

2 comentários:

  1. Paulo.
    Quem é o autor desta pérola.?
    Fernando Florencio
    Ilheus/Ba

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    1. josecarloscsouza@oi.com.br7 de maio de 2012 às 23:51

      Meu primo, Jorge Remígio, filho de D.Ozanira e neto do saudoso SAMUEL CARNEIRO, também meu avô.

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