16 outubro, 2021

Jovenildo Pinheiro - "O guardião de um tempo de papel"

Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem 

Entre as oito estantes de metal, um conjunto de recortes de jornal relembra aquele turbulento Natal olindense de 1986. Incitados por um grupo de oposição ao prefeito José Arnaldo beatos radicais ameaçavam destruir o presépio confeccionado com bonecos gigantes feitos por Silvio Botelho para concretizar o projeto da então gestora de cultura da cidade, a artista plástica Tereza Costa Rêgo. As figuras bíblicas semelhantes às do Carnaval e, heresia suprema, Nossa Senhora de peito nu amamentando o Menino Jesus no Coreto do Carmo, viraram polêmica nacional. Misteriosamente incendiado, o presépio olindense motivou um debate com matérias em programas como o dominical Fantástico, sobre liberdade artística, respeito e intolerância religiosa. Arcebispos e até a atriz Fernanda Montenegro se manifestaram publicamente a respeito. Este e outros episódios com a memória de Olinda correm o risco de ficar sem guardião.

Na última quinta-feira, dia 29, o sertanejo Jovenildo Pinheiro de Souza deixou de subir, diariamente, os três lances de escadas do sobrado centenário localizado ao lado da Prefeitura de Olinda. Aos 70 anos, o historiador cuja vida pessoal deveria, ela própria, ter suas memórias rigorosamente arquivadas, se aposenta. E não há ninguém especificamente designado para assumir seu papel como coordenador da Hemeroteca do Arquivo Público de Olinda, o Arquivo Público Municipal Antonino Guimarães, criado em 1975 e que, em 1983, ganhou sede própria no casarão desapropriado da família Coelho Leal.

“Tenho mesmo muito medo de que isso aqui se acabe. Meu trabalho tem sido de sacerdócio”, diz ele que, desde 1986, diariamente, lê, recorta e arquiva com a paciência de uma criança diante do álbum de figurinhas tudo que sai sobre Olinda em revistas e jornais. Além da imprensa local e nacional contemporânea, o arquivo conta com exemplares raríssimos das antigas revistas Realidade, Crítica, do jornal O Pasquim, do antigo jornal gay o Lampião (editado pelo agora novelista Agnaldo Silva) e até o primeiro exemplar do Olinda Jornal, restrito à cidade, publicado em 1946. Tudo, tudinho original. “Há anos que pedimos computadores, mas nada”, ele diz. Ali, tudo é lido, recortado, guardado e mantido pelo sertanejo de 70 anos. Nenhum periódico da Hemeroteca foi microfilmado.

Jovenildo começou a trabalhar no arquivo em 1986, a convite de Tereza Costa Rego, a artista plástica que, como ele, voltava do exílio. Mas antes de cuidar com zelo dos fatos olindenses guardados para as próximas gerações, Jovenildo viveu, ele próprio, parte importante da história do século 20. Filho de um pequeno industrial enriquecido com o comércio de algarve na Segunda Guerra Mundial com uma de suas operárias em Custódia, no Sertão pernambucano, ele não conheceu a mãe biológica. “Ela morreu no parto”, ele diz. Criado como filho da irmã do pai com seu marido em Caruaru, era um jovem estudante secundarista quando recebeu, em 1968, o convite para participar do incipiente Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, PCBR, uma das siglas a aglutinar jovens dispostos a pegar em armas contra a ditadura.

Como estudante de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi preso em 1972, na Praça Valdemar de Oliveira, no inesquecível dia 4 de abril de 1972.  Depois de 15 dias encapuzado no Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna, o famigerado DOI-CODI das proximidades do Parque 13 de Maio, onde teve direito a choques elétricos e espancamentos, foi transferido para a sede da Secretaria de Segurança Pública da Rua da Aurora. Acabou, por falta de provas, inocentado nas acusações baseadas na Lei de Segurança Nacional. “Eu saí inocentado, mas os militares disseram que não ficaria barato”, diz ele. Nos bares em que chegava, encontrava, quase sempre, um dos agentes dos tempos de prisão. “O Serviço Secreto não era tão secreto assim”, diz ele.

Depois de uma conversa com o partido, resolveu que migraria para o voluntário. Governado pelo socialista Salvador Allende, o Chile era a meca dos exilados revolucionários da América Latina. “Havia gente trabalhando nos ministérios e secretarias para regularizar a situação e conseguir os passaportes de quem chegasse”, lembra.

Um mês, porém, depois de chegar a Santiago, houve o golpe que derrubou Allende. Com todos os militantes tarimbados já previamente avisados e abrigados em embaixadas de onde saíam para o exílio, Jovenildo, o revolucionário inocente, foi pego de surpresa. Sem abrigo ou destino, ficou mais de um mês vagando por Santiago até ser recolhido para um campo de concentração da ONU. “Havia o toque de recolher e quem fosse pego depois das 18h era fuzilado. Era horrível a quantidade de cadáveres na rua. Dormia em qualquer buraco, não sei como sobrevivi”, diz ele, que finalmente conseguiria exílio para um ano bem decepcionante em Cuba de onde saiu para Portugal – onde a família pôde saber finalmente de sua condição como ser vivo desde que desaparecera.

Com a anistia, ele voltou e se integrou ao mestrado de História da UFPE onde conheceu Tereza Costa Rego, com quem teve um breve relacionamento e a parceria na criação do novo arquivo de Olinda. Uma história que chega ao fim. A prefeitura diz que os funcionários dos outros setores se revezarão para dar conta de sua função. “Esses arquivos podem se acabar”, teme o historiador com aurea de personagem histórico. 

Arquivo Postado Originalmente no JC 30/05/2015 de autoria de Bruno Albertim.

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