16 outubro, 2020

Memórias daquela infância

Por Juliana Marinho Pires

Aconteceu algo incrível hoje. Descobri o que procurei por alguns anos sem sucesso: o início da autobiografia de papai. Há seis anos, eu lhe convenci a registrar suas memórias. Ele me ditava e eu escrevia. Era um momento único, desses de pai e filha, em que ele contou um pouco da sua infância, a época pela qual ele tinha tanto carinho, e cada um desses personagens e lugares tão queridos e essenciais para ele, sempre.

Lembro que ele me ditava com ar professoral, como esses mestres que dominavam tudo e eu, como a aluna inquieta e curiosa. A nossa relação na verdade foi sempre assim. Acho que fui uma boa aluna porque tive um mestre e tanto.

Pena que neste projeto das memórias só chegamos até o capítulo 5. Troquei de computador algumas vezes nesse tempo, e no vai e vém pensei ter perdido esse documento tão precioso. Hoje, despretenciosamente, vagueando por pastas e arquivos, lá me apareceu o dito cujo, sorrindo. Copio abaixo o texto, na íntegra:

Memórias do meu pai

Dedicatória: Estas memórias foram inspiradas por meus pais e minha filha Juliana, pessoas a quem dedico este exemplar.
Brasília, outubro de 2006

Capítulo 1
Meus primeiros anos

Em 1924, no mês de abril, quem passasse pela estrada de Afogados de Ingazeira a Macacos toparia com dois cavaleiros: no burro da frente José Pires Ferreira, e no cavalo de trás sua esposa, Filomena Pires de Freitas, com quem tinha se casado havia quase um ano. Eles vinham de Afogados, interior de Pernambuco e Vale do Pajeú, onde Zuzú (como foi conhecido por toda vida) viajava para assumir uma casa comercial em Macacos. Filomena, ele a conhecera na casa de sua irmã, que depois se tornaria minha madrinha – Sinhá e seu marido Bruno, meu padrinho. Filomena conhecera meu pai na casa de meu futuro padrinho, quem no futuro ajudaria na transferência de meu pai de Espírito Santo – hoje cidade de Tabira – para Iguaraci, nome que tomou Macacos muitos anos depois. No segundo cavalo estava ela, no oitavo mês de gravidez, acomodando o ventre no silhão – tipo de cela para mulheres. A casa de Macacos fora comprada de um tal Anísio, de onde ela tirou o nome do filho que estava por nascer.

Meu pai foi sócio dos meus tios e seus irmãos, Pedro e Severino, em Afogados. Era uma casa comercial de tecidos e afins, de nome Pires Irmãos. Em Macacos foi comerciante sozinho até se transferir, em 1928, para Custódia, onde já residia seu irmão mais velho João Pires. Este depois mudou-se para Arapiraca, em Alagoas, após o assassinato de seu filho Otacílio por adversários políticos da cidade. Chegamos exatamente no dia de sua emancipação política de Alagoa de Baixo, hoje Sertânia. Foi seu primeiro prefeito Nemésio Rodrigues de Melo, pai do esposo de Tivinha, afilhada de minha mãe, que morava conosco. Pordeus Pires, meu tio que vivia em Custódia, era casado com uma moça de Vila Bela, hoje Serra Talhada.


Capítulo 2
A operação

Quando estava com três anos de idade, tive que ser operado de um tumor que me apareceu nas costas. Guardo desta cirurgia duas cicatrizes que vêm me acompanhando por toda a vida. Uma delas foi erro médico e a outra finalmente atingiu o tumor. O médico que me operou vinha todos os anos a Pesqueira, município vizinho à Custódia, onde passava suas férias e aproveitava para exercer a profissão. Dizem os de casa que chorei muito.


Capítulo 3
A Revolução de 30

Na Revolução de 30, meu pai ficou ao lado da Aliança Liberal, formada pela Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande do Sul... “Em São Paulo e na Bahia, o povo não tem votação, só se fala no Getúlio, só se fala no Getúlio em toda a população...Salvai! Salvai! Gaúchos e mineiros, paraibanos da Aliança Liberal, quarenta milhões de brasileiros...” Zuzu era aliancista, ao contrário de seus irmãos, perrepistas e ficaram em Afogados cuidando da Pires Irmãos. Quando lá foi, procurou o comandante da Aliança e evitou que seus irmãos fossem presos e até fuzilados, como muitos o foram. O auxiliar da padaria, nosso vizinho em Custódia, para não ser fuzilado, passou a prestigiar os revoltosos. Com o triunfo da Revolução, Getúlio se tornou Presidente da República. Em Pernambuco, ficou como governador o aliancista Lima Cavalcanti.

Eu tinha então seis anos. Nossa família era composta por seis pessoas: além de meus pais, meus irmãos mais velhos, Teófilo e Antenor, filhos do primeiro casamento de meu pai, e minha irmã mais nova, Maria do Carmo. Teófilo era um exímio tocador de violão e estudava no Colégio Nóbrega do Recife. Era dez anos mais velho que eu. Antenor ajudava meu pai agora com sua própria na loja, conhecida como “Loja do Seu Zuzu”. Depois foi estudar no Colégio Salesiano do Recife. Ambos eram internos e vinham passar as férias em casa. Antenor era somente dois anos mais velho que eu. 

Certa vez, meu pai deixou um revólver sobre a mesa, onde havia um oratório. Antenor, sem querer, disparou o revólver e a bala foi parar dentro da gaveta. Durante anos essa mesa ficou para os filhos como exemplo do que não se deve fazer. Naquela época, no nordeste, era comum que todos andassem armados, pois a política não era brincadeira. Meus irmãos me ajudavam a fazer os deveres de casa mais difíceis, quando estudava com Dona Manoca, que além de professora era irmã do chefe político da oposição em Custódia, Sr. Ernesto Queiroz, assassinado muitos anos depois em Caruaru.

Capítulo 4
Maria do Carmo e Licinha

Maria do Carmo é minha única irmã de pai e mãe. Seu nome veio em homenagem à Nossa Senhora do Carmo, padroeira do Recife. Nasceu em 1926, dois anos depois de mim. Dizia-se em casa que eu era o dodói de minha mãe e Maria do Carmo do meu pai. Naquela época, brincávamos muito juntos com Rosilda e Dorinha, filhas de Dona Clarinha e netas do Seu Joaquinzinho. Eram nossas vizinhas de paredes-meias. Como não tinha meninos de minha idade na vizinhança, brincava com elas, às vezes com certa impaciência de suas brincadeiras de meninas. 

Certa vez, pendurei Dorinha pelas tranças no armador de redes de minha casa. Ela gritava de dor, com o couro cabeludo latejando. Minha mãe ouviu os gritos e a resgatou. Entretanto, minha mãe era incapaz de me punir. E o assunto ficou encerrado. Certa vez, em uma de minhas travessuras, minha mãe me trancou no quarto e pediu que gritasse de dor enquanto batia na parede, simulando uma surra. Meu pai, do lado fora, em determinado momento, pediu que minha mãe parasse, pois a piza já tinha sido suficiente. E eu saía impune e ia diretamente brincar.

Com o casamento de Tivinha, que morava conosco, Licinha foi convidada a morar em nossa casa, porque sua mãe faleceu no parto de sua irmã mais nova e seu pai do coração. Em nossa casa, acabou ficando como filha de criação. Sua grande mágoa foi não ter ido para o colégio das irmãs em Caruaru, onde estudava Maria do Carmo. Licinha guarda essa mágoa até hoje. Por ficar com meus pais, Licinha trabalhou na loja durante muito tempo. A “Loja do Zuzu” ficava a dois quilômetros de casa e a três do curral onde se criava o gado.

Além da loja e do curral, meu pai se dedicava à política. Era filiado ao PSD – Partido Social Democrático, criado quando extinta a ditadura de Vargas.

Capítulo 5
A Escola

As primeiras letras eu aprendi em casa com minha mãe e também os primeiros números. Depois fui para a Escola de Dona Manoca, que me pôs em contato com outras letras e números, existentes na carta de ABC e na tabuada. Era meu pai que sempre nos ensinava que não se deve misturar as duas coisas, quando falávamos que Dona Manoca era irmã de Ernesto, seu adversário político e presidente da UDN local. Daí vem talvez o meu caráter tolerante com tudo, desde política até crenças religiosas.

Quando tinha por volta dos 10 anos, fui estudar com Dona Arlinda e depois com Dona Isaura. As aulas que ministravam puseram-me em contato com a História e a Geografia. Isso me ajudou muito no meu aprendizado. Mal sabia que estas disciplinas me ajudariam muito na minha formação intelectual, e que sempre, de uma maneira ou de outra, estive muito ligado a elas.

Andava já nos meus 12 anos quando meu pai decidiu que eu iria fazer o curso ginasial em Caruaru, no Ginásio de Luiz Pessoa. Caruaru fica a 200 quilômetros de Custódia. Lá, ensinavam o Professor Zé Leão, Bione e Dr. Silvestre Guimarães. Meus irmãos que estudavam no Recife, Teófilo e Antenor, deixaram o curso pela metade e foram ajudar meu pai a dirigir a loja. Meu pai achava que os estudos eram muito importantes, a despeito de tudo, mas aceitou-os de volta. Maria do Carmo foi estudar no Colégio Sagrado Coração, das Irmãs Dorotéias, de Caruaru. Foi lá que terminou o curso de professora. Voltou a Custódia e começou a lecionar no grupo escolar local.

No Ginásio de Luiz Pessoa, onde fazíamos também as refeições, houve uma semana em que só serviram fígado no almoço. Eu em casa não comia carne de fígado e passei a comê-la a partir desses dias até hoje. Os meus colegas de ginásio, com quem me entendia muito bem eram: Otaviano Mathias da Silva e seu irmão, que faleceu anos depois quando já me encontrava em Belo Horizonte. Era conhecido como Matoso, uma corruptela de Mathias. Eram também meus amigos e colegas de turma Manuel Andrada Maciel, de Serra Talhada, que no término do curso foi o nosso orador oficial e Antônio Ribeiro de Godoy, famoso Tota, parente do governador do Estado, Agamenon Magalhães. Este era um grupo que não fazia parte do pessoal ligado ao esporte, ficávamos batendo papo e conversando fiado.

Terminado o curso de Caruaru fui fazer o curso pré-médico no Colégio Oswaldo Cruz. Findo esse curso, fiz o vestibular para a Faculdade de Medicina do Derby, o qual passei de primeira. No meio do curso superior, houve uma greve contra um professor e a maioria dos alunos se transferiu para a Bahia e eu para Belo Horizonte, onde morava meu padrinho Zé Pinto e sua família. Isso era nos anos 40. Zé Pinto era amigo de meu pai, Zuzu, e se mudou para Minas Gerais a procura de coisas melhores, o que aconteceu. Lá, ele trabalhava na Secretaria da Fazenda como office boy. E assim fui encontrá-lo.

Fonte: Blog Raio da Cerebina

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