20 agosto, 2020

O filme - Texto Jorge Remígio

foto: filme Cinema Paradiso (internet)

Texto: Jorge Remígio
João Pessoa - PB
Agosto/2020

O FILME 

Custódia. Transcorria o ano de 1963, eu tinha oito para nove anos e a Praça Padre Leão era da meninada, como o céu é do avião. Como era comum à época, vivíamos brincando nas ruas centrais da cidade e naquela manhã clara de um sábado ensolarado, a molecada enchia a praça com brincadeiras. Para citar algumas: como era bom o preso a favor, correr naquelas ruas escuras nos enchia de emoção. E o garrafão? Brincadeirazinha violenta, hein? Sentir aquela adrenalina ante o perigo de levar tapas e murros, entretanto, o gostinho de poder dar outros também era excitante. Jogar bola descalço sobre os paralelepípedos sem se importar com o perigo que o dedão do pé corria; guerrear com índios, bandidos e mocinhos; jogar bola de gude; pião; puxar carros de madeira; apostar corridas de prado; e o irreverente “boquinha de forno, forno, jacarandá, já, quando eu mandar, vou, e se não for? Bolo. Sinhô rei mandou dizer que fossem na bodega de seu Joventino e pegasse um punhado de farinha ou feijão”. Era o máximo essas peraltices infantis. Toda essa miscelânea de entretenimento se completava com o filme de final de semana, exibido no cinema de Zé de Izaías. Ficávamos esperando ansiosos pela colocação dos cartazes à frente do passeio público, entre o Clube e o Bar Fênix. 

Naquela manhã, corri para ver os cartazes já postos. Ao chegar, ainda ofegante pela disparada, tive que esperar duas adolescentes admirarem as cenas em fotografias, para também deleitar-me na imaginação, já prevendo um filme imperdível para a noite. Uma das mocinhas, da qual me lembro muito bem, era Lourdinha Leite, quem fez um comentário, no mínimo inusitado para a colega. Disse: “EITA FILME BOM DA GOTA, ESSE EU NÃO PERCO NEM QUE O CÃO BOTE O RABO NO MEIO”. Achei a coisa mais interessante daquela manhã. Quando as mocinhas saíram, fiquei esperando os parceiros chegarem, queria plagiar aquela pérola. Não demorou três minutos, lá estavam os contemporâneos, num misto de algazarra e observação. Esperei o momento certo para fazer o meu brilhante comentário. Então, sapequei: “EITA FILME BOM DA GOTA, ESSE EU NÃO PERCO NEM QUE O CÃO BOTE O RABO NO MEIO”. Não modifiquei nem a vírgula. 

“Ôba! A noite chegou”. Como já era o costume, me dirigi como um raio até a Rua da Bomba, cujo nome era devido ao funcionamento do Posto Shell e Posto Esso, naquela rua. Tenho boas lembranças da minha infância naquele local. Vivia em constante movimento, era efervescente, parecia estar desconectado de uma Custódia calma e bucólica nos primórdios dos anos sessenta. Caminhões passando, carros abastecendo, ônibus parando nos hotéis dos postos ou no Hotel Sabá e ainda tinha por ali, o Hotel de “Zabé”; Café da Hora; Farmácia; oficinas; a bodega do meu avô Samuel Carneiro; armazéns; borracharias; além de um barzinho colado ao Posto Esso, pequeno, mas aconchegante, onde o meu pai costumava tomar cervejas com os amigos. Logo após o posto fiscal, iniciava-se a subida de uma grande ladeira na direção de quem ia para a capital e um fato sempre me intrigava, mexia com o meu raciocínio lógico de criança de segunda infância: os motoristas de caminhões ao cruzarem com colegas, perguntavam: “Tá subindo ou descendo amigo?” Uns diziam, apontando na direção da grande ladeira íngreme: “Estou descendo”. Ficava pensando: “Mas como? Se tinha que subir a ladeira para ir ao Recife”. 

foto: filme Cinema Paradiso (internet)

Sim, voltando ao que me interessava naquele momento, comecei a procurar o meu pai, encontrando-o debaixo do seu caminhão Chevrolet. Acho que a bronca era grande, ele estava com um ajudante, que segurava um bico de luz que alumiava alguma parafuseta. Pelo semblante, observei que ele estava nervoso. Coisa rara, pois ele era uma pessoa muito calma. Então, me abaixei e falei uma frase que já havia sido repetida em mil sábados. “Pai, me dá dinheiro pra eu ir ver o filme” Ele de pronto, contrariando todo um histórico favorável, disse incisivo e forte “NÃO! Vá para casa menino”. Aquilo me causou calafrios, gelei, engoli seco, tentei me enganar fingindo não ter ouvido nada e tornei a repetir a mesma frase, porém, já sem muita segurança. “Pai, me dá dinheiro pra eu ir ver o filme”. Aí ele foi grosso mesmo e falou quase gritando. “MENINO! Vá para casa, senão você apanha”. Não havia mais espaço para argumentar nada. Fiquei sem ação, sem querer acreditar no que estava ocorrendo, aquilo fugia a tudo que eu poderia imaginar naquela noite. Saí cabisbaixo, contornei o final da Rua do Rio e ao pegar a Rua Padre Leão, em frente à Prefeitura, onde hoje fica o Banco do Brasil, veio-me à mente um estalo, levando-me de volta à bendita manhã daquele sábado ensolarado. “Eita! Foi o danado do cão. Será?” Hoje seria mera coincidência, mas para uma criança do interior no início dos anos sessenta, onde tínhamos uma ideia real do inferno sem nunca ter andado por lá, o fato ganha outra dimensão. As histórias de almas penadas, casas “malassombradas”, causavam pânico nas crianças, a sociedade praticava um catolicismo quase arcaico e de total hegemonia sobre outras religiões, as quais quase não existiam na cidade. A ideia do inferno ficou mais aguçada e aterrorizante em mim, quando, após uma aula de catecismo ministrada na matriz de São José por Dona Maria Josefina, essa convidou todas as crianças até a sua residência que ficava por detrás da casa paroquial. Seguimos em fila indiana para o casarão e após atravessarmos um longo jardim, adentramos em uma sala espaçosa com pouca luminosidade e cortinas pesadas. Notei que uma das paredes era repleta de quadros com fotografias de antepassados, o que dava um ar lúgubre ao ambiente. Dona Maria Josefina ausentou-se por pouco tempo, retornando em seguida com um grosso livro nas mãos, o qual foi apresentado às crianças bem comportadas e bastante curiosas pelo conteúdo. Deparamos com gravuras em bico de pena, onde a meninada pávida e atônita, via rios de sangue fervente, onde ardiam os culpados de violência contra o próximo, chuvas de brasas, almas penadas se contorcendo nuas em um fogo abrasador. Outras eram açoitadas por diabos com tridentes, torturadas por serpentes enroladas em corpos nus... que cenário, hein? 

Muitos anos depois, descobri que aquele livro grosso, era A DIVINA COMÉDIA do poeta e escritor italiano Dante Alighieri (1265-1321). Todas essas imagens atormentavam a minha mente, até que fui despertado pelo toque de um moleque, tirando-me daquele quase transe. “Ôxe!, tu não vai pro filme não?” E eu mentindo disse: “eu ainda vou passar em casa”. Naquela noite demorei bastante a pegar no sono, olhando para o telhado ou rolando de um lado para outro da cama. E o pior de tudo ainda estava por vir. Foi quando na manhã do domingo, logo cedinho, todos os meus amigos correram até a minha casa na Rua Padre Leão n° 12 e me contaram em detalhes minuciosos, O FILME. 


7 comentários:

  1. Nossa que viagem ! Amei ! 👏👏👏👏👏👏

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  2. Maravilhoso! Custódia da nossa adolescência. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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  3. Voltei no tempo da minha meninice, era como você descreveu!eu tinha muito medo dos três dias de escuro. Parabens meu primo.👏👏👏👏👏👏👏👏

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  4. Jorge, Esse é um filme dentro de outro. Só que dessa vez o artista saía perdendo.

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    1. Kkkkkkkk,isso mesmo, primo. O pior de tudo, como falei, foi a inveja que os amigos me fizeram, contando o filme. Detalhe: não devemos plagiar nada. Ainda mais, se tiver o cão no meio desse rolo.

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  5. Que maravilha, meu irmão! Você sempre nos presenteando com suas crônicas super envolventes 👏👏👏👏👏👏❤❤❤

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  6. Cada história é uma viagem na imaginação, muito bom.

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