Texto: José Melo
Recife-PE
CAPITÃO
Uma das figuras mais conhecidas da Custódia de décadas atrás, entre as muitas existentes, tinha um quê interessante: Ninguém sabia seu verdadeiro nome. Para todos, era apenas Capitão. Quando algum curioso perguntava seu nome e sua origem, de onde era, etc., ele desconversava e nada esclarecia.
Sua vida era uma rotina altamente cansativa: todos os dias, descia a Serra do Sabá, com sua tropa de jumentos, encangalhados e cada um com três ancoretas de água mineral da fonte de Sabá, para vender nas casas dos mais “ricos”. Percorria invariavelmente o mesmo roteiro, batendo sempre as mesmas portas, fazendo a entrega até o meio dia, quando então em pleno sol escaldante fazia o caminho inverso e mais difícil: a subida dos doze quilômetros que separam a Fonte de Sabá da cidade.
Capitão espelhava o autêntico sertanejo rude, mas educado, miserável, mas lutador, que jamais fraqueja ente as dificuldades da vida. Sua aparência lembrava um pouco os cangaceiros do sertão: baixo, forte, troncudo, cabelos e barbas longas, com seu indefectível cigarro de fumo de corda sempre aceso e o velho chapéu de couro sendo retirado da cabeça, num sinal de respeito, sempre que se dirigia à alguém. Suas vestes eram compatíveis com a rudeza da vida que levava: calças e camisas de cáqui, tecido grosso, alpercatas de rabicho, com solado de pneu de caminhão, um albornal onde acomodava seus apetrechos indispensáveis à sua vida. Ali ele carregava o rolo de fumo, o pacote de palhas de milho (para enrolar os cigarros de fumo), o quicé para picar o fumo, e o “currimbó”ou “fogueteiro”.
Convém fazer uma pausa para explicar o que era o “fogueteiro”. Consistia em um pedaço do chifre de boi, cortado e alisado manualmente, cheio de fibra de algodão, guarnecido por uma tampa feita de um pedaço de cuia, e nele amarrado uma pequena haste de ferro.
O prazer do viciado em fumo era precedido de um verdadeiro ritual: primeiro preparava a palha de milho, cortando-a e alisando-a com as costas do quicé, depois prendia-se a mesma entre os lábios, enquanto picava vagarosamente o fumo, que após ser desfiado, era enrolado na palha de milho. A seguir, parte do ritual que requeria perícia: acender o “currimbó”.
O usuário abria o “currimbó”, colocava ele na palma de sua mão, fechando-o entre os dedos, e acomodava uma pedra de fogo (geralmente um pedaço de rocha preta e dura) nos dedos polegar e indicador. Com a outra mão segurando a pequena haste de ferro, cujo nome era fuzil, era desferido um golpe forte, resvalando da pedra.
O atrito provocava centelhas de fogo que caiam sobre o algodão, e com poucos sopros estava aceso o maior isqueiro do mundo. Para apagar, bastava fechar o “currimbó” vez que ausência do ar apagava o fogo preservando o algodão para outras ocasiões.
Capitão viveu durante muitos anos nessa rotina, sem jamais faltar um dia sequer, sempre abastecendo seus clientes com a cristalina água de Sabá. Quando Capitão apontava na Rua, a molecada corria atrás dele, sempre fazendo a invariável pergunta:
- Capitão, cadê a guerra?
Ao que ele paciente e invariavelmente sempre respondia, apontando pra ao céu e para o chão:
- Tá no ar e ta na terra!
Sei que deixou marcado na memória de centenas de crianças, o seu jeito bonachão e paciente de ser, o mistério sobre a sua vida de ermitão lá nas brenhas do Sabá, e principalmente, a lembrança do desfilar de sua tropa de jumentos pelas ruas da cidade, com o chocalho badalando, avisando da chegada do Capitão.
Lembro.muito desse bordão: Capitão, cadê a guerra?
ResponderExcluirMas não sabia de onde se originada essa frase.
Muito bom ter lido e conhecido a origem dessa frase.
Lindo conto!
Perfeito esse traçado que você faz, Zé Melo, dessa figura ímpar de Capitão. Lendo, vi-o diante de mim. E me lembrei de mamãe perguntando pela água de Sabá - e ele explicando: " Ah, dona Ester, quando eu vou apontando ali na Bomba, é tanta natureza em riba d'eu..." Obrigada por essa lembrança viva, que você traz com tanta intensidade, mesmo tâo distante no tempo. Primoroso o seu texto!
ResponderExcluirLaíse Rezende