01 agosto, 2020

De uma criança no seu tempo


Por Miguel Pedrosa
Juazeiro-BA

Como é fantástico o nosso processo de acessar memórias. Memórias são códigos esperando serem reprocessados para ganhar formas. Formas que assumem vida e movimento, odores, sabores e emoções. E a emoção é o “interface”. É a fronteira que une o virtual e o real dando vida a uma entidade chamada lembrança.

O tempo retroage em minha mente. Estou em Custódia. Ano 1947. Aliás, estamos chegando, eu, meus pais e meus irmãos em cima de um caminhão oriundos das barrancas do *Velho Chico. despejando nossa bagagem no chalé de Dona Anita Remígio. Este é um panorama totalmente diferente do de nossa terra de origem, onde predominam as visões de muita água, vapores e rústicos veleiros carregados de mercadorias. E ali pela primeira vez na vida vejo um tipo de embarcação diferente: um carro de boi. O comandante: o carreiro. O leme: o ferrão, uma grande vara com um ferro na ponta que a um leve toque do carreiro gera a obediência dos bois da junta  determinando a direção. Diferente dos vapores do São Francisco, o apito é o som monótono do atrito do eixo de madeira com o “cocão” todo lambuzado de graxa misturada com pó de carvão para produzir aquilo que mais parecia com um gemido. Lembram-se da música de Jackson do Pandeiro que diz: carro de boi que não geme não é bom, carro de boi tem que ter um gemedor (?).

E aqui abro um tópico de transição para mudar o tempo de minha narrativa e fazê-la referindo-me ao passado.

 Eu era muito perguntador e em poucos dias já sabia muitas coisas sobre as características daquela cidade que depois se tornaria a pátria de minhas melhores lembranças. E ali a hospitalidade dos nossos novos amigos, alguns depois transformados numa espécie de parentes fraternos, nos reservou aquele cantinho chamado Várzea. Não, não era um bairro e não tinha nome de rua; era apenas a várzea. Nós éramos uma espécie de retirantes diferentes, pois fugindo do padrão, estávamos vindos de uma região de muita fartura. E o nosso novo lar também era farto, inclusive do aconchego daqueles eu nos recebiam com muito carinho. Não senti falta do “Velho Chico”, pois ainda não tinha com ele a intimidade eu tenho hoje. E eu e Custódia nos assimilamos numa reciprocidade maravilhosa.

Dalí, da Várzea, eu incursionava por todos os demais recantos, livre, sem medos... ôpa... Havia medo sim! Eu tinha medo de um cidadão chamado Barnabé, operador do “motor da luz”, que brincando dizia que “ia me capar”. Um dia ele me salvou de uma surra de minha mãe e tornamo-nos grandes amigos.

Tomar banho no chafariz (o banheiro da cidade) era outra novidade. Logo-logo nos tornamos amigos deSeu Duda Amaral” , (o seu Duda do Banheiro), que com os bolsos do paletó de linho amarrotado cheios de fichas de metal que era a moeda corrente no comércio da água, estava sempre pronto a oferecer torrado aos amigos, e quando não tinha aquele maravilhoso derivado do fumo de rolo, perguntava: “tem tabaco aí!?” – Ah seu Duda Amaral com suas ventas cheias de torrado e seu rol de grandes amigos, inclusive o meu pai! – Ah velho Barnabé que dizia que ia me capar, mas graças a Deus nunca o fez!

Ah velha Várzea com sua variedade de odores! Cheiros de tanino e de goiabas encaixotadas para seguir para a fábrica Peixe em pesqueira para serem transformadas em doce. O tanino, (pó de casca de angico), que segundo me diziam seguia para Recife para virar tinta nas fábricas de tecidos, exalava aquele cheiro de matéria orgânica apodrecida, mas não chegava a ser desagradável. E nessa variedade de odores havia também o cheiro de óleo diesel do motor da luz e que muitos chamavam de “óleo cru”. – No centro da cidade, o cheiro que predominava principalmente no início das manhãs frias, era o de pão assando no forno da Padaria de João Miro. – Mas a noite a coisa era diferente: na praça da cidade exalavam variados perfumes. Moças a rapazes fazendo o “footing”, ou seja, passeando em volta da praça. Elas de braços dados cheirando a Royal Briar ou Marajoara, e eles cabelos cheios de brilhantina (de preferência Glostora), tanto poderiam estar usando Tabú como Água de Colônia Regina. Parados à margem do passeio ou sentados num banco, faziam a paquera visando um namoro ou um futuro casamento. Naquele tempo era assim!

Nas manhãs frias da Várzea era gostoso acordar bem cedinho e ficar ali perto do fogão de lenha do velho chalé esperando o café quentinho que sairia da chaleira de zinco comprada na feira. Foi ali que comecei também minha carreira de motorista. Motorista de galão. Galão d’água com duas latas pequenas para encher os potes de casa. Depois cresci um pouco mais e fui promovido: passei a “dirigir” um galão maior com duas latas grandes, cada uma pela metade. E o melhor é que eu gostava de fazer tudo aquilo, tanto que tempos depois recebi a promoção de “comandante” de um galão completo.

O prêmio depois? Brincar o dia quase todo dentro do sitio de Dona Anita com os filhos de Zé Biá. E depois chegar em casa cansado cheirando a grude, tomar um banho (forçado), jantar e dormir o sono da inocência na noite fria de Custódia.

Em Custódia nunca tive pesadelos. Tudo era uma gostosa fantasia na qual eu me transformava em tudo que queria. Fui vaqueiro montado em cavalo de pau; fui cowboy rendendo os bandidos e salvando a mocinha; fui o primeiro e único locutor da Rádio Caixa D”água da Várzea; fui Tarzan pendurado numa corda nas mangueiras do sítio de Dona Anita (depois minha madrinha de São João). E na vida real eu era Miguel Lopes da Silva, menino filho de seu Pedro e de Dona Olívia. E neste cenário de novas realidades, além de motorista de galão fui estudante do único grupo escolar da cidade do qual fiz parte da primeira banda marcial de apenas três instrumentos (uma caixa, um taról e um surdo). Ah como isto foi grandioso para o meu pequeno ego!

E para finalizar eu diria que: em Custódia eu fui o meu ator preferido da maior super-produção que a vida poderia engendrar, cuja fita está arquivada num reservado especial de minha mente ao qual somente eu tenho acesso, mas que posso exibi-la a qualquer momento para os meus melhores amigos em sala especial, e esta é apenas uma de suas partes .    
                                                                           
ASSISTA AO PRÓXIMO EPISÓDIO.
THE END!

3 comentários:

  1. A Industria automobilística está atrazada.Até agora só conseguiram fazer o Bi-Trem.
    Naquela época, 1947, em Custódia já se usava a Hexa-junta de boi.
    Fernando Florencio
    Ilheus/Ba

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  2. Miguel parou por que? E esse The end? Esse texto é tão bom que torci para ele não acabar. Ainda bem que você prometeu novos episódios desse maravilhoso filme. Estou esperando . Abrir o baú da memória é por para fora as preciosidades que guardamos é um ato generoso. Sou grata a você por isso. A Várzea foi o meu mundo mágico

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  3. Miguel volto aqui para dizer que minha mãe leu o seu texto e gostou muito. Ela disse que você foi fidedigno no seu relato. Dona de uma memória privilegiada ela ver relatos aqui no Blog que não concorda. Como dizem os goianos tem gente pulando corriguinho ou seja:viajando na maionese.Ela lembra bem de sua mãe Olivia e ficou surpresa de vê-lo com os cabelos brancos rsrsrs A pessoa congela na memória a pessoa do jeito que viu da derradeira vez e o tempo não para,não é verdade? Um grande abraço


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