Como é fantástico o nosso
processo de acessar memórias. Memórias são códigos esperando serem
reprocessados para ganhar formas. Formas que assumem vida e movimento, odores,
sabores e emoções. E a emoção é o “interface”.
É a fronteira que une o virtual e o real dando vida a uma entidade chamada
lembrança.
O tempo retroage em minha
mente. Estou em Custódia. Ano 1947. Aliás, estamos chegando, eu, meus pais e
meus irmãos em cima de um caminhão oriundos das barrancas do *Velho Chico. despejando nossa bagagem
no chalé de Dona Anita Remígio. Este é um panorama totalmente diferente do de
nossa terra de origem, onde predominam as visões de muita água, vapores e
rústicos veleiros carregados de mercadorias. E ali pela primeira vez na vida
vejo um tipo de embarcação diferente: um
carro de boi. O comandante: o carreiro. O leme: o ferrão, uma grande vara com
um ferro na ponta que a um leve toque do carreiro gera a obediência dos bois da
junta determinando a direção. Diferente
dos vapores do São Francisco, o apito é o som monótono do atrito do eixo de
madeira com o “cocão” todo lambuzado
de graxa misturada com pó de carvão para produzir aquilo que mais parecia com um
gemido. Lembram-se da música de Jackson
do Pandeiro que diz: carro de boi que não geme não é bom, carro
de boi tem que ter um gemedor (?).
E
aqui abro um tópico de transição para mudar o tempo de minha narrativa e
fazê-la referindo-me ao passado.
Eu era muito perguntador e
em poucos dias já sabia muitas coisas sobre as características daquela cidade
que depois se tornaria a pátria de minhas melhores lembranças. E ali a
hospitalidade dos nossos novos amigos, alguns depois transformados numa espécie
de parentes fraternos, nos reservou aquele cantinho chamado Várzea.
Não, não era um bairro e não tinha nome de rua; era apenas a várzea. Nós éramos uma
espécie de retirantes diferentes, pois fugindo do padrão, estávamos vindos de
uma região de muita fartura. E o nosso novo lar também era farto, inclusive do
aconchego daqueles eu nos recebiam com muito carinho. Não senti falta do “Velho
Chico”, pois ainda não tinha com ele a intimidade eu tenho hoje. E eu e
Custódia nos assimilamos numa reciprocidade maravilhosa.
Dalí, da Várzea,
eu incursionava por todos os demais recantos, livre, sem medos... ôpa... Havia medo
sim! Eu tinha medo de um cidadão chamado Barnabé, operador do “motor da luz”,
que brincando dizia que “ia me capar”. Um dia ele me salvou de uma surra de
minha mãe e tornamo-nos grandes amigos.
Tomar banho no chafariz (o
banheiro da cidade) era outra novidade. Logo-logo nos tornamos amigos de “Seu Duda Amaral” , (o seu Duda do
Banheiro), que com os bolsos do paletó de linho amarrotado cheios de fichas de
metal que era a moeda corrente no comércio da água, estava sempre pronto a
oferecer torrado aos amigos, e quando
não tinha aquele maravilhoso derivado do fumo de rolo, perguntava: “tem tabaco aí!?” – Ah seu Duda Amaral
com suas ventas cheias de torrado e seu rol de grandes amigos, inclusive o meu
pai! – Ah velho Barnabé que dizia que ia me capar, mas graças a Deus nunca o
fez!
Ah velha Várzea com sua
variedade de odores! Cheiros de tanino e de goiabas encaixotadas para seguir
para a fábrica Peixe em pesqueira para serem transformadas em doce. O tanino, (pó
de casca de angico), que segundo me diziam seguia para Recife para virar tinta
nas fábricas de tecidos, exalava aquele cheiro de matéria orgânica apodrecida,
mas não chegava a ser desagradável. E nessa variedade de odores havia também o
cheiro de óleo diesel do motor da luz e que muitos chamavam de “óleo cru”. – No
centro da cidade, o cheiro que predominava principalmente no início das manhãs
frias, era o de pão assando no forno da Padaria de João Miro. – Mas a noite a
coisa era diferente: na praça da cidade exalavam variados perfumes. Moças a
rapazes fazendo o “footing”, ou seja,
passeando em volta da praça. Elas de braços dados cheirando a Royal Briar ou Marajoara, e eles cabelos cheios de brilhantina (de preferência Glostora), tanto poderiam estar usando
Tabú como Água de Colônia Regina. Parados à margem do passeio ou sentados num
banco, faziam a paquera visando um namoro ou um futuro casamento. Naquele tempo
era assim!
Nas manhãs frias da Várzea
era gostoso acordar bem cedinho e ficar ali perto do fogão de lenha do velho
chalé esperando o café quentinho que sairia da chaleira de zinco comprada na
feira. Foi ali que comecei também minha carreira de motorista. Motorista de
galão. Galão d’água com duas latas pequenas para encher os potes de casa.
Depois cresci um pouco mais e fui promovido: passei a “dirigir” um galão maior
com duas latas grandes, cada uma pela metade. E o melhor é que eu gostava de
fazer tudo aquilo, tanto que tempos depois recebi a promoção de “comandante” de
um galão completo.
O prêmio depois? Brincar o
dia quase todo dentro do sitio de Dona
Anita com os filhos de Zé Biá. E depois chegar em casa cansado cheirando a
grude, tomar um banho (forçado), jantar e dormir o sono da inocência na noite
fria de Custódia.
Em Custódia nunca tive
pesadelos. Tudo era uma gostosa fantasia na qual eu me transformava em tudo que
queria. Fui vaqueiro montado em cavalo de pau; fui cowboy rendendo os bandidos
e salvando a mocinha; fui o primeiro e único locutor da Rádio Caixa D”água da
Várzea; fui Tarzan pendurado numa corda nas mangueiras do sítio de Dona Anita
(depois minha madrinha de São João). E na vida real eu era Miguel Lopes da
Silva, menino filho de seu Pedro e de Dona Olívia. E neste cenário de novas
realidades, além de motorista de galão
fui estudante do único grupo escolar da cidade do qual fiz parte da primeira
banda marcial de apenas três instrumentos (uma caixa, um taról e um surdo). Ah como isto foi grandioso para o meu
pequeno ego!
E para finalizar eu diria que: em Custódia eu fui o meu ator preferido
da maior super-produção que a vida poderia engendrar, cuja fita está arquivada
num reservado especial de minha mente ao qual somente eu tenho acesso, mas que
posso exibi-la a qualquer momento para os meus melhores amigos em sala especial,
e esta é apenas uma de suas partes .
ASSISTA AO PRÓXIMO EPISÓDIO.
THE END!
A Industria automobilística está atrazada.Até agora só conseguiram fazer o Bi-Trem.
ResponderExcluirNaquela época, 1947, em Custódia já se usava a Hexa-junta de boi.
Fernando Florencio
Ilheus/Ba
Miguel parou por que? E esse The end? Esse texto é tão bom que torci para ele não acabar. Ainda bem que você prometeu novos episódios desse maravilhoso filme. Estou esperando . Abrir o baú da memória é por para fora as preciosidades que guardamos é um ato generoso. Sou grata a você por isso. A Várzea foi o meu mundo mágico
ResponderExcluirMiguel volto aqui para dizer que minha mãe leu o seu texto e gostou muito. Ela disse que você foi fidedigno no seu relato. Dona de uma memória privilegiada ela ver relatos aqui no Blog que não concorda. Como dizem os goianos tem gente pulando corriguinho ou seja:viajando na maionese.Ela lembra bem de sua mãe Olivia e ficou surpresa de vê-lo com os cabelos brancos rsrsrs A pessoa congela na memória a pessoa do jeito que viu da derradeira vez e o tempo não para,não é verdade? Um grande abraço
ResponderExcluir