06 agosto, 2020

O troco

Texto: Jorge Remígio
João Pessoa - PB
Agosto/2020


Chegamos ao ano de 1970 e Custódia ainda detinha uma das maiores feiras das cidades do sertão pernambucano. 

O aglomerado tomava quase todos os espaços geográficos da pequena cidade e, naquela época, a população rural superava e muito a quantidade de pessoas que habitavam a urbe. 

Então, um dia de segunda feira era um dia todo especial. A população mais que duplicava com a “invasão” das pessoas vindas dos sítios e de muitas cidades circunvizinhas, as quais vinham tanto negociar, expor seus produtos, como também adquirir outras mercadorias. 

Tinha ruas inteiras que comportavam produtos específicos, como: feira das frutas, onde também se vendia verduras, cocadas de umbu, bolos de mandioca e de batata, caldo de cana, raspa-raspa, sem falar nas barracas que serviam os deliciosos pratos de bodes guisados. 

Ruas onde se encontrava uma variedade de calçados, tecidos, estivas e tudo que se possa imaginar. A feira era tão intensa, que os jovens e crianças adoravam passear naquele “mar de gente”. 

Mas, meu intuito não é escrever sobre a antiga feira de Custódia, e sim, sobre a bodega do meu avô Samuel Carneiro de Farias no dia da feira. 

As bodegas eram lotadas nesse dia, pois supermercados ou mesmo mercadinhos ainda inexistiam. 

Era comum as pessoas que habitavam nas regiões do município, fazerem a feira nas bodegas e vendas próximo do local de partida para suas moradas. 

A “Rua da Bomba”, que é parte da Av. Inocêncio lima, era um local bem estratégico, pois era saída para os Distritos do Ingá, Maravilha e Samambaia ao Sul do município, como também para os muitos sítios que ficavam na direção leste. 

Existia o costume de se fazer a feira na bodega e deixá-la em um saco com a identificação, guardados nos cantos de parede e só no final da tarde, quando se dirigiam para pegar o transporte, é que pegavam a feira. Então, as bodegas comportavam pessoas e muitos sacos com mercadorias já adquiridas, guardados ali, enquanto os donos iam bater perna na feira. 

Nesse ano eu fui trabalhar nos dias de feira na bodega do meu avô. O movimento era intenso, balcão cheio, muitas pessoas falando ao mesmo tempo, um barulho ensurdecedor, mas, logo nos acostumávamos com aquele alvoroço todo. 

Lembro que o meu tio Erasmo, ao se aposentar da Polícia Militar, foi residir em Custódia e ficou administrando a bodega junto ao meu avô e no final da feira, quando viu o dinheiro que eu tinha ganho pelo dia de trabalho, ficou indignado e disse: “pai, isso não é dinheiro para se dar para Jorge, que mixaria da gota” abriu a gaveta e me deu uma nota que equivalia a três vezes mais a que eu tinha recebido. 

Acho que meu avô quase teve um passamento naquela hora. Os meus irmãos menores, Sérgio e Jânio, ainda cumpriam aquele ritual de irem até a bodega no dia da feira para pegar a verba institucionalizada. 


Olha! o dinheiro era muito pouco mesmo. Traduzindo o valor de compra, equivalia a três picolés ou quatro no máximo. Nesse dia, Sérgio chegou na hora de maior movimento e é interessante dizer que o neto não pedia o dinheiro. Só em estar ali no pé do balcão, já estava implícito. 

O atendimento ao neto não era imediato, pois os fregueses tinham prioridade. Sempre tinha o famoso chá de cadeira, mas nesse dia estava em demasia. E Sérgio ali, paciente, calado, entendendo até que o grande movimento da bodega não lhe favorecia em ser logo atendido. Enquanto pensava, chega um menino quase da sua idade no balcão e estende um papel para o meu avô, com uma lista de mercadorias. 

Samuel procura todos os itens e despacha todos para o menino que lhe entrega um envelope com o dinheiro. Sérgio distraído, nem notou que o avô lhe entregava a tão esperada verba dos picolés. Recebeu o dinheiro e saiu como um raio da bodega entupida de gente. Após passarem uns quinze minutos, o meu avô olhou para o galeguinho que permanecia ali encostado no balcão e perguntou: 

-Diga, meu filho 

-Eu estou esperando pelo troco da feira, seu Samuel 

-Mas eu não já lhe dei? 

-Não. O senhor deu para um menino que estava aqui ao lado 

Foi um desacerto total, meu avô botou a mão na cabeça e disse. “ virge maria, e agora? Eu dei o troco para meu neto” E ficou aquela lamentação sem fim. 

Nesse exato momento, Sérgio acabava de comprar uma lata de leite condensado e uma lata de salsichas Wilson, na bodega de Evilásio. Era o sonho de consumo de toda meninada daquela época. Desejo realizado, graças ao bendito troco. 

13 comentários:

  1. Gostei muito da crônica ! 👏👏👏👏👏

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  2. Mas, homem!
    Que distração lamentável... rsrsrs
    Belíssimo texto, Jorge.

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  3. Que maravilha seus textos, Jorge! Fico aguardando a sua produção literária nessas quarentena na maior expectativa, pois são narrativas espetaculares 👏👏👏👏❤❤❤

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  4. Jorge.Maravilhosas suas lembranças.Resgate bonito de nossa terra.Quem dera pudesse emendar pra de 70 avante.Joao Verissimo

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  5. Que história bacana! É uma viagem no tempo, e me fez recordar das segundas-feiras que vivenciei na terrinha.

    Muito bom!

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  6. Que maravilha, meu irmão! Fiz uma verdadeira viagem à bodega do vovô e até senti a energia daquele monte gente. Eu e Ana Cláudia também fazíamos parte da freguesia da benção do dia da feira e pulávamos de alegria quando acompanhado daquela esperada verba do picolé, vinha também um zorro, confeito ou chiclete. Você lembrou um fato interessante, A gente não pedia, apenas esperava e celebrava com festa o trocado que viesse!

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  7. Coisa de um passado distante, mas para nos, que vivenciamos a epoca, ainda está muito presente. Meu primo Jorge Remigio passeia com as palavras. Falta transporta-las para o papel.

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  8. Linda história,primo Jorge. Quando papai estava densimpregado, eu e meu irmão Samuel, víamos do sítio num jumentinho, pegar a feira que vovô Samuel dava a gente. Tinha 9 pra 10 anos. Nunca esquecie das guloseimas. pipocas, Pirulito ciclete e zorro. Quando chegávamos em casa era uma festa. EU e meus irmãos, ficavamos muito contentes. Vovô Samuel foi um pai e um avô maravilhoso. Muitas saudades! !!!!

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  9. Texto maravilhoso, eu sinto muita saudade da feira de Custódia. Adorava comer quebra-queixo. Kkkk
    Obrigada Jorge por estas lembranças da nossa cidade .
    Marta

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  10. Que leitura maravilhosa!
    Lembro muita da bodega do "tio Samuel", pois era assim que mamãe o chamava, como também, "tia Presa".
    Passeei no tempo. Vivi tudo isso, também, a mesada no dia de feira era muito esperada...
    Nossa feira, nossos antepassados deixaram marcas fortes na infância.
    Isso é importante.
    Parabéns, Jorge!
    Leio tudo que você escreve, e volto no tempo.
    Obrigada!

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  11. Muitas recordações boas daquela época Jorge. Eu sou Jorge Garibalde, filho de José Heleno e Teresinha Moura. Também tínhamos uma bodega que hoje fica em frente a prefeitura, e realmente as bodegas eram todas cheias do pessoal que vinham dos sítios com seus cavalos e jumentos.

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  12. Eita primo q saudade dessa bodega de vovô Samuel,ia muito,principalmente nas segundas p ajudar e recebia tbem~Rosilene Moura .

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