Por Miguel Pedrosa
Era assim na década de 50. Meninos vivendo à sombra dos homens e procurando imitar todos os detalhes de suas vidas. Seus trabalhos, seus trejeitos, suas manias e vícios, e até mesmo a linguagem dos homens com autoridade e voz grossa era por eles seguida em tom de falsete. E assim era montado o palco para a vida dos meninos, cada um procurando representar o melhor possível o modelo de adulto que mais admirava. Não usávamos os nomes desses modelos, pois parece que mesmo subconscientemente desejávamos conferir autenticidade aos nossos personagens.
Ao imitar o meu pai eu não era o meu pai, mas eu mesmo personificando o meu arquétipo de homem perfeito. Ao brincar com as meninas elas não eram diferentes pois também procuravam harmonizarem-se com comportamentos que retratassem as futuras mulheres que achavam que veriam a ser. E assim era a vida dos meninos e das meninas do meu tempo. Meninos com meninos brincavam de trabalhar e usavam os jargões de tratamento e da profissão dos homens adultos. Meninas com meninas brincavam de boneca e de casinha, mas quando meninas brincavam com meninos, além do processo de imitação, entrava em cena os inevitáveis impulsos biológicos, acionando ao nível do psiquismo a compulsão a que tanto se referiu *Sigmund Freud sobre a influência da libido. E aqui eu paro porque alguém poderá desejar saber com quais meninas do meu tempo em brinquei de papai e de mamãe querendo imitar os adultos.
Mas para não deixá-los frustrados contarei uma história real dentro do mesmo tema: eu ganhara de minha mãe um cavaquinho de presente, feito com capricho por um marceneiro vizinho nosso lá da querida Várzea. Alguém que não me lembro quem, ensinou-me as três notas de um sofrido **lá menor, através do qual eu acompanhava algumas canções da época, pois afinal de contas, entre outras coisas eu também queria ser cantor. E numa noite de lua cheia no horário permitido aos meninos, lá vou eu imitando um adulto seresteiro: “desperta do teu leito e vem ouvir a luz da lua/ desperta toda rua, somente um violão/ que traz ao coração de tanto amor, de um trovador...” (sucesso da época gravada em disco de 78rpm pelo cantor Augusto Calheiros). Acompanhado de outros meninos, sempre cantando e tentando dedilhar as posições do lá menor, ultrapassei os limites do banheiro público em direção à fazenda de Seu Zé Major, e parando ousadamente no terreiro onde estavam sentados os donos da casa não senti a menor cerimônia e continuei a cantar para eles.
O meu concerto infantil terminou com os aplausos de Seu Zé Major e da esposa Dona Firmina. Ambos eram muito amigos de meus pais. Ainda me lembro da fisionomia e da elegância de Seu Zé Major. Mesmo cego tinha um porte impecável e sua voz grave conferia-lhe destaque ao falar . Sempre de terno quando se dirigia para o centro da cidade acompanhado de seu guia oficial de nome Dêma, um rapazola por eles criado, não faltava quem com ele quisesse bater um papo sobre os mais diversos temas.
Querem saber como terminou minha seresta mirim no terreiro da fazenda de Seu Zé Major, na velha Várzea? – Dona Firmina serviu café com bolo de milho àquela turma de pequenos seresteiros, e eu feliz e satisfeito retornei pelo mesmo trajeto, sempre cantando e acompanhando no cavaquinho as mais belas canções de amor que aprendi com os adultos, ao invadir o seu mundo querendo ser um deles. E era assim a vida dos meninos do meu tempo na Velha Várzea, hoje conservada intacta na minha memória de adulto.
*Sigmund Freud, pai da psicanálise (1856 – 1939)
** Lá Menor, 6ª nota da escala musical com três posições básicas em violão e cavaquinho.
Miguel Pedroza
ResponderExcluirEste seu postado em preto e branco nos remete a uma época colorida que jamais se verá nada parecido.Muito embora nesta década eu fosse também um visionário infantil querendo logo ser homem, não lembro do nobre cronista. Lembro bem do Sr. Zé Major, Da. Firmina e Dema.
Fernando Florêncio
Ilhéus\Ba
Ilheus\Ba