Vanise Rezende
Recife-PE
Recife-PE
Quando alguém se aposenta, após um longo período de
trabalho profissional, são recorrentes as oportunidades de repassar na memória
os tempos em que são feitas as primeiras escolhas da vida.
Desde os passos iniciais já se começa a desbravar
empecilhos e aprender como se equilibrar nos pedregulhos ou superar veredas
espinhosas.
Nas caminhadas é possível descobrir a exuberância
de uma paisagem à subida da serra, contemplar vales verdejantes ou ouvir o
sussurro das águas que arrebentam nas pedras. Também é possível observar a singela
beleza de um estreito corredor sertanejo ladeado de avelós ou cercado de arame farpado e cipós ressequidos.
Os diferentes momentos da vida oferecem paisagens diversas
que enchem a vista de emoções únicas. Ao contemplar essas paisagens, os caminhantes
podem, até, não se dar conta de quando estão
a chegar ou, mesmo, a se perder do seu destino.
Comigo não foi diferente. Meu primeiro trabalho, ao
terminar o magistério, foi o de enfrentar uma sala de pivetes assanhados que eu
nem sabia conduzir. O magistério não era bem o que gostaria de escolher. Meu pai,
cuidadoso com o futuro das filhas, não me permitiu seguir o curso clássico da
época, como eu teria desejado. Sertanejo de rígidos princípios, pensava que as filhas
mulheres devessem cursar o magistério, pois
assim estariam preparadas para o casamento e a maternidade. Quanto aos dois
rapazes, meus irmãos, ah, estes sim, puderam escolher advocacia e engenharia
como desejavam, pois seriam futuros doutores e chefes de família. Esse foi o meu
inevitável roteiro de iniciação.
Assim, quando estava por
completar onze anos fui acompanhada por meu pai a Pesqueira, cidade agreste das
primeiras fábricas de doces, com seus altos bueiros, cuja fumaça anunciava aos
viajantes a proximidade da chegada. Era a minha primeira viagem de trem e a
primeira viagem a lugares fora dos ares do sertão.
Não obstante a rigidez do
internato havia algumas alegres compensações: a
saída nos finais de semana, quando eu era acolhida pelos parentes, na cidade,
sempre que conseguisse manter qualidade no estudo e um bom comportamento. Assim, podia ir ao cinema, a grande novidade
da época, quando via o seriado de Tarzan ou mesmo um filme com Beth Davis. Seu Né
Marinho, meu pai, me visitava a cada mês trazendo guloseimas com os sabores de Custódia e as notícias de minha mãe, Ester, cuidadosa
e terna, na época ainda ocupada com os filhos menores.
A vida, no internato, era bem diferente dos dias da
infância, em Custódia. Lá aprendi a cuidar da minha voz participando do canto coral
que me trazia muitas alegrias e suscitava novas descobertas sobre a arte da
convivência humana. Nos ensaios do coral aprendi a ouvir a voz dos outros com
atenção, a levantar ou baixar o tom da minha voz para harmonizá-la com o solfejo
coletivo, a esperar o momento de cantar e saber quando, de súbito, silenciar.
Os sonhos se abriam para
o mundo ao tempo em que aprendia a localizar-me no colorido labirinto do Mapa
Mundi. Sonhos ingênuos de então que se tornavam sempre mais espaçosos e cheios
de desejos.
Foi no internato que aprendi melhor a arte de pensar, nos longos momentos de
silêncio impostos na sala de estudo das estudantes internas. Era um espaço
apropriado para que, entre as ingênuas adolescentes do internato, as mais
ousadas se iniciassem nos emocionantes momentos de transgressão: ali, escrevíamos
cartas aos jovens estudantes do Colégio
Diocesano ou das cidades onde havíamos deixado a nossa infância. Pois o coração
da mulher, ainda que criança, já começa a entrever, embora com certo
desassossego, as suas escolhas e os seus afetos.
O silêncio e a quase imobilidade exigidos por cerca
de três horas para o estudo das internas, também serviam para a leitura de
cartas que chegavam dos correios, sem a intervenção das cuidadosas mestras protetoras. Também preparávamos
bilhetes para os amigos e amigas da cidade. Era um espaço em que podíamos sonhar
os sonhos mais reclusos, enquanto fosse possível alcançar o desejo que tínhamos
de ser grandes.
No internato também aprendi a preparar as famosas
filas para o êxito nas provas mais difíceis. As provas de bordado e tricô eram, para mim, mais temidas do que as chatas
operações de matemática. Sempre me reconheci limitada às artes manuais, tão
criativas e práticas, mas para mim dificílimas de executar. Havia sempre uma
colega que aceitava, em troca de alguns “sopros” nas provas de história ou
geografia, preparar um arremedo que fosse do trabalho em causa, a fim de que eu
conseguisse, no máximo, o mínimo da nota necessária.
Aos quinze anos iniciei os primeiros passos da tão
sonhada libertação dos pais. Consegui
que Seu Né entrasse em contato, em Recife, com o hoje grande filósofo e
professor Zeferino Rocha, então
sacerdote responsável pela Ação Católica da Juventude Estudantil (JEC) da
Região Nordeste. Sob a sua tutela, papai me permitiu residir em Recife, numa
casa estudantil da Ação Católica. Mais tarde mudei para outro pensionato com mais
duas irmãs que também estavam vivendo em
Recife.
A convivência saudável e solidária com outros
jovens da Ação Católica promoveu o meu interesse por novos projetos. Assim, fui
descobrindo novas oportunidades a medida que participava dos fóruns de cinema, de
encontros de literatura e, até, da reuniões de poesia e dança que fazíamos para
nos divertir. Foram os melhores tempos da cultura francesa na formação dos
estudantes da época.
Aos 21 anos fui convidada a participar de um congresso
religioso, na Europa (Frankfurt), o que contribuiu para que aquela matuta lá do sertão alargasse
mais o seu olhar sobre o mundo e se ocupasse de questões, desta vez trazidas
por outro movimento que também privilegiava a fraternidade universal: o
Movimento dos Focolares.
Foi a oportunidade que tive de, então, estudar e residir
em Roma, trabalhar para complementar a bolsa de estudos que consegui na
Universidade, e manter contato permantente com pessoas de outros países, seja
na comunidade onde vivia, seja com os colegas universitários - provenientes do
então chamado “terceiro mundo”.
Tudo isso me levou a formar uma consciência crítica
razoável diante das já então gravíssimas diferenças entre povos, países e
pessoas da comunidade universal. Foram nove anos de trabalho social, como
também de muito aprendizado e vivências de momentos gratificantes na minha vida
pessoal e profissional, na Itália e, posteriormente, no Brasil.
Na Itália estudei Comunicação Social e Jornalismo e,
de volta ao Brasil cheguei a me tornar educadora, pela urgência das
necessidades dos empobrecidos. Com o aprendizado do trabalho em diferentes programas e projetos estaduais e
federais que coordenei, na região
Nordeste, exerci, mais tarde, a profissão de consultora de centros universitários,
secretarias de educação estaduais, organizações não governamentais e outras
instituições. Meu último trabalho formal foi o de consultora de dois programas
do Ministério da Educação, na região metropolitana do Recife.
Nesse percurso, o casamento, a maternidade e,
posteriormente, a convivência com minhas
três filhas, já adultas, me ensinaram a estar atenta aos sinais dos tempos, às extraordinárias e rápidas mudanças por que
passou a minha geração e ao grande salto percebido, também, na geração de minhas
filhas. Nesses tantos anos, tão rico de parcerias e excelentes experiências
sociais, a vida me ensinou a enxergar, com mais clareza, como as grandes
mudanças influenciaram positivamente e profundamente o meu modo de pensar e de
agir, até agora, com os setenta e mais anos que carrego com tanto
prazer.
Hoje, ao manter a partilha com pessoas de idades e
condições de vida diferentes, enriqueço-me e amplio o meu aprendizado e o
exercício do bom senso, o que me ajuda a continuar a fazer novos projetos, a acreditar
na beleza da vida e a estar aberta a novas aventuras como esta de brincar de
escrever, que gosta tanto!
Lembro de Vanize Rezende chegando a Custódia de férias escolares, garbosa, trajando a "farda" inconfundível de normalista e irradiando doçura.
ResponderExcluirO Trajeto entre a "Bomba" onde parava o ônibus da Realeza e a residência da família Pires de Rezende, transformava a Praça Pe. Leão numa imensa passarela.Os súditos, frequentadores do "quadro" quedavam-se à passagem da nobre dama.
Hoje, através deste meio moderno de comunicação, Vanize brinda a todos os Custodienses de priscas eras com esta bela crônica do seu dia a dia de outrora.
Neste relato não tem como não sentir a presença marcante e dócil de Da. Ester,"Seo" Né Marinho, Leny,Helio,Bete, Laise e Dada.O outro que se foi precocemente, não lembro o nome. É bom que seja assim.Substituo-o por João de Maria, a quem a família Pires de Rezende deve ter dado um norte seguro.
Vanize, é muito bom ler aquilo que nos prende a atenção. Só não vive e revive o passado que não quem história.
Nos brinde sempre com sua presença neste meio de comunicação.
Das Terras do sem Fim de São Jorge dos Ilhéus, litoral Sul do Estado da Bahia de Todos os Santos, Todos os Deuses e Todos os Orixás, segue o meu abraço saudoso
Fernando Florencio
Ilheus/Ba
Caro Fernando. Só há poucos meses li essa sua crônica de tempos atrás. Agradeço-te a gentileza. Agora, que o blog de Custódia se abriu a outras temáticas, acredito que estaria na hora de iniciar a minha colaboração.
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