12 junho, 2023

Cacimba Nova - autor: José Melo

 


José Soares de Melo
Recife-PE
Março/2012

O título não tem nada a ver com a excelente música de Zé Marcolino, eternizada na voz do também eterno Luiz Lua Gonzaga. É apenas um rasgo de lembranças de um passado distante, sepultado que foi pelas águas do Açude Marrecas. Cacimba Nova era o sítio em que vivi memoráveis dias de felicidade na minha infância, dias que conseguiram gravar imagens indeléveis daquela paisagem, que começava na Fazenda Guarani, hoje transformada pela invasão urbana da cidade em ruas que compõem o Bairro da Redenção. Quantas vezes não fiz o percurso de nossa casa, nos fundos da mercearia de minha família, na esquina da Avenida Manoel Borba, com a Avenida Onze de Setembro! Cruzava a Rua deserta, cedinho, sob a névoa que dominava as manhãs da cidade, pegava a calçada do velho Grupo Escolar General Joaquim Inácio, e no final do seu muro cruzava o antigo campo de futebol, onde hoje funciona o Posto Tamboril.

A partir daí, um sombreado corredor composto por cercas de avelozes, com a estradinha macia, coberta de uma areia branca, muito fina, levava até a velha casa de meus avós, distante cerca de três quilômetros da cidade. Poucas casas no trajeto. A primeira, de um senhor,cujo nome era algo como Manoel Conceição; a seguir, uma pequena sequência de casebres de taipa, onde moravam a família de “Seu” Porfírio, e de uma senhora já centenária, cujo nome minha memória teima em não lembrar. Depois, já chegando ao Guarani, após uma curva, um pequeno quarto, onde funcionava a Bodega de João de Zumba. Mais a frente, a Fazenda que dava nome ao lugar, Guarani, com seu bangalô moderno, e um imponente Eucalipto ao lado. Agora a estrada já era mais estreita, com a vegetação quase que a recobrindo. Ao final daquele corredor, um velho umbuzeiro era parada obrigatória, quando em safra, para a colheita de umbus. A Casa de Henrique, meu parente, como quase todos que residiam naquelas bandas. Pertinho, o casarão de Tio Anízio Batista, que na verdade era tio de meu pai. Outras casinhas mais adiante, sempre de parentes. Os Raimundo, a “Tia Miné”, Minervina, outra tia do meu pai, a enorme Casa de “Tio Zé Batista”, que anualmente promovia o mais animado São João da região.

Cruzando o Rio da Marreca, logo após um pequeno trajeto, chegava a casa dos meus avós. Velho casarão cujas paredes mais pareciam as de uma igreja: cerca de cinqüenta centímetros de espessura. Porta larga e muitas janelas na frente. Um verdadeiro salão era na verdade a parte mais movimentada da casa: modestamente mobiliada – apenas um imenso e pesado banco de baraúna, algumas cadeiras, uma mesinha com o oratório, alguns quadros com gravuras de santos e fotografias da família e mais nada, além dos indispensáveis “armadores de rede”, feitos em madeira e encravados na largas paredes, servia como sala de visitas, capelas para as novenas, dormitório de redes estendidas quando a família se reunia, área de diversão da criançada quando o sol estava muito forte ou chovia, sem falar nos verdadeiros saraus literários que eram realizados nos finais de semana, com a família reunida para ouvir a leitura obrigatória do mais autêntico meio de propagação da cultura da época, e que era conhecido por “Romance”, como era conhecido o hoje famoso Cordel. Um corredor escuro separava aquele salão da Sala de jantar, e dividia a casa em duas alas com suas “camarinhas”, duas de cada lado, que era como chamavam os quartos. Na sala de jantar, uma comprida e pesada mesa, com duas cadeiras nas testadas e dois bancos nas laterais era o local das várias refeições diárias: o café da manhã, sempre a seis horas, o almoço, as dez horas, a ceia, as quinze horas e o jantar as dezessete horas, além dos lanches das crianças.

Nada me agrava mais do que após as primeiras travessuras do dia, ir para o “Reveso”, como chamavam um pequeno pomar que ficava em frente à casa, as margens do Rio.Colhia Goiaba, manga, banana, Graviola – que conhecíamos como “Coração da Índia”, caju e muitas hortaliças e verduras. No mesmo ficava a cacimba, a fonte de abastecimento da casa, durante o período de seca.

Achava interessante a minha avó preparar o xerém, moendo o milho numa espécie de moenda, composta por duas rodas de pedra, uma sobre a outra. A de cima dispunha de uma espécie de maçaneta e de um buraco, onde eram colocados os grãos. Girando a parte de cima, o atrito entre as duas pedras quebrava o milho, produzindo o xerém.

Da mesma forma era interessante quando minha avó ia “torrar” café. Os graus do café, misturados a pedaços de rapadura em uma panela fumegando espalha o cheiro forte do café por centenas de metros. Depois de torrado, o café se transformava no massa pastosa, extremamente preta, que era espalhada também sobre uma pedra lavrada, em formato de tábua, para esfriar e endurecer. Depois de frio, o café se transformava em uma espécie de pizza preta, que era quebrada e jogados os pedaços no pilão para ser socado até virar aquele pozinho amarronzado e de cheiro forte.

Na cozinha, o velho “Meu Louro”, que não escapava das brincadeiras da meninada. Tio Dué o ensinou a assoviar. Anos depois, não sei como, ele ensinou o papagaio a perguntar, sempre que alguém assoviava:

-“ Foi eu ou foi tu?”

Tio Dué caía na gargalhada, dizendo que o papagaio estava “caducando”.

No cercado que ficava após o curral, as margens de um riacho, um frondoso sombrião, com suas flores vermelhas era o abrigo certo para as brincadeiras da meninada, quando o sol queimava de quente. Algumas fruteiras, como pinha, manga e graviola nos forneciam preciosos frutos.

No terreiro da frente, a velha quixabeira, que abrigava do sol o velho e encardido carro de bois. Deitado nele sonhei muitos sonhos de criança livre, despreocupada e feliz.

Ao entardecer, não sei por que, mas sempre me sentia como que angustiado, naquele momento de paz, de solidão, no lusco-fusco da passagem do dia para a noite. Os pássaros iam encerrando suas sinfonias, o sol esmaecia no poente, os únicos barulhos perceptíveis eram os dos chocalhos que com seu som monótono anunciavam a chegada das vacas leiteiras do pasto, para a separação noturna de seus bezerros, que ficavam, no linguajar do sertanejo, “apartados” para preservar o leite da manhã seguinte.

E a noite assumia o lugar do dia, não raro com a presença mágica da lua, que enfeitava o céu azulado com sua claridade prateada derramando-se pelos terreiros, estradas e roçados. Estrelas brilhantes enfeitavam aquele cenário espetacular, deixando a todos embalados pela brisa fresca que varria os campos e chegava até a calçada do velho casarão, verdadeiro encantamento que me fazia teimar em permanecer até tarde observado aquele cenário.

Velhos tempos, belos dias que teimam em não sair da minha lembrança.


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