O
correr da vida não embroma o tempo nem as suas etapas, e não segue o
calendário astucioso que remarca o Ano Novo, a Quaresma, a Páscoa, o São
João, e mesmo o alvoroço do Galo da Madrugada no carnaval do Recife. O
inesperado chega sem data marcada e não olha o relógio, nem mesmo o do
coração.
A
vida é carregada de surpresas, e os dias não se repetem, por mais que
pareçam iguais: há dias que são de festejar, há os que só têm a esperar,
os que deslizam nas horas que nem se sabe como se foram, os que muito
demoram a passar, e os que deixam momentos grudados na gente,
enquadrando o sentimento que existiu um dia, e fincando imagens de
sombra e luz nas raízes da memória.
Basta
uma brisa suave a banhar-nos o rosto, o balbucio sonoro de uma canção,
uma carta encontrada ao acaso, uma folha a cair, a imagem de alguém
esquecida num livro, um botão que se abre em flor... Qualquer descuido, e
o tempo é logo reinventado, chega correndo ao reverso na memória do
afeto, e se instala no agora como um feitiço sem carência de permissão. E
lá estou eu em Custódia, a correr atrás do palhaço de pernas de pau... A
tomar leite ordenhado pertinho do quintal da minha casa... A me
apresentar no pastoril como a contramestra do encarnado e, cheia de
alegria, a chegar na casa dos avós, em Tabira, quando ouvíamos as
histórias medonhas do meu avô, que nos trazia arribaçãs da vazante, e
tinha o nome igual ao de Lampião.
Volver
a los siete años! Sentir o ardor das chineladas da minha mãe na palma
das mãos, o cheiro do café torrado no tacho, o gosto da paçoca de carne
seca e farinha, pisada no pilão... E contemplar minha avó, Mãe Dondom,
com o seu grande rosário azul e branco, absorta a rezar por todos
nós...
Voltar a correr pela minha casa tão grande, limpa e arrumada... Lá estava a minha mãe, que sabia de tudo:
– Cadê o caderno a tesoura o cordão o lápis...
– O meu livro, onde está?
A minha mãe sabia!
E
como eram bonitos os primeiros namorados de minha irmã! Sempre os
olhava como fosse eu a namorada, pois ainda não aprendera a distinguir
os sentimentos nascidos no meu próprio coração. Da infância, tão
intensa, restou-me a vontade de subir no caminhão que levava a moçada
aos piqueniques, na fonte de Sabá. Nós, ainda crianças, não podíamos
subir no caminhão, nem tomar banho de rio, como todo mundo fazia, e –
como todo mundo – éramos proibidas de montar a cavalo e aprender a
nadar... Os cuidados do meu pai, apesar do seu amor, traduziam-se no
rompimento das alegrias que ansiávamos experimentar, como todo mundo.
Ainda ouço, na memória do afeto, o burburinho da máquina Singer da minha mãe, a embalar o meu crescer...
Zomp zomp zom
Zarp zarp zar
Era o som do motorzinho
De uma Singer a costurar...
Que alegre era ela
Sete filhos a cuidar
Feito uma leve gazela
Ela cantava... cantava...
Sem nunca se lamentar!
Zomp zomp zom
Zarp zarp zar
Era o som do motorzinho
De uma Singer a costurar
Recordo
os meus vestidos de organdi, então adolescente, de saia longa, com
babados e sianinha! E não esqueço o São João caipira quando todos tinham
a sua fogueira na frente de casa. Era importante colocar uma faca na
bananeira. Quando a tirávamos, devia-se ver a primeira letra do nosso
futuro príncipe encantado. Sempre se consultava a bacia d´água, junto da
fogueira, para ver o nosso rosto refletido (que ninguém queria morrer
naquele ano!).
E as serenatas... Ah! As serenatas na calçada da igreja matriz, embaladas em doces canções no violão...
“Sertaneja se eu pudesse
Se papai do céu me desse
O espaço pra voar...
Eu corria a natureza
Acabava com a tristeza
Só pra não te ver chorar!”
Saíamos
da cama para abrir uma brechinha da janela e ver os seresteiros. Suas
vozes nos permitiam adivinhar o cantor... no desejo de ser a felizarda a
quem ele se dirigia.
Da
minha família, restou-me a profunda marca da ternura e da alegria,
feito dia de Páscoa e de Natal: os cuidados da minha mãe, como se fossem
durar a vida inteira! O zelo do meu pai, como se jamais me fosse
faltar!
Por Vanise Rezende
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