21 maio, 2023

A roda do tempo


O correr da vida não embroma o tempo nem as suas etapas, e não segue o calendário astucioso que remarca o Ano Novo, a Quaresma, a Páscoa, o São João, e mesmo o alvoroço do Galo da Madrugada no carnaval do Recife. O inesperado chega sem data marcada e não olha o relógio, nem mesmo o do coração. 

A vida é carregada de surpresas, e os dias não se repetem, por mais que pareçam iguais: há dias que são de festejar, há os que só têm a esperar, os que deslizam nas horas que nem se sabe como se foram, os que muito demoram a passar, e os que deixam momentos grudados na gente, enquadrando o sentimento que existiu um dia, e fincando imagens de sombra e luz nas raízes da memória. 

Basta uma brisa suave a banhar-nos o rosto, o balbucio sonoro de uma canção, uma carta encontrada ao acaso, uma folha a cair, a imagem de alguém esquecida num livro, um botão que se abre em flor... Qualquer descuido, e o tempo é logo reinventado, chega correndo ao reverso na memória do afeto, e se instala no agora como um feitiço sem carência de permissão. E lá estou eu em Custódia, a correr atrás do palhaço de pernas de pau... A tomar leite ordenhado pertinho do quintal da minha casa... A me apresentar no pastoril como a contramestra do encarnado e, cheia de alegria, a chegar na casa dos avós, em Tabira, quando ouvíamos as histórias medonhas do meu avô, que nos trazia arribaçãs da vazante, e tinha o nome igual ao de Lampião. 

Volver a los siete años! Sentir o ardor das chineladas da minha mãe na palma das mãos, o cheiro do café torrado no tacho, o gosto da paçoca de carne seca e farinha, pisada no pilão... E contemplar minha avó, Mãe Dondom, com o seu grande rosário azul e branco, absorta a rezar por todos nós... 

Voltar a correr pela minha casa tão grande, limpa e arrumada... Lá estava a minha mãe, que sabia de tudo: 

– Cadê o caderno a tesoura o cordão o lápis... 

– O meu livro, onde está? 

A minha mãe sabia! 

E como eram bonitos os primeiros namorados de minha irmã! Sempre os olhava como fosse eu a namorada, pois ainda não aprendera a distinguir os sentimentos nascidos no meu próprio coração. Da infância, tão intensa, restou-me a vontade de subir no caminhão que levava a moçada aos piqueniques, na fonte de Sabá. Nós, ainda crianças, não podíamos subir no caminhão, nem tomar banho de rio, como todo mundo fazia, e – como todo mundo – éramos proibidas de montar a cavalo e aprender a nadar... Os cuidados do meu pai, apesar do seu amor, traduziam-se no rompimento das alegrias que ansiávamos experimentar, como todo mundo. 

Ainda ouço, na memória do afeto, o burburinho da máquina Singer da minha mãe, a embalar o meu crescer...

Zomp zomp zom

Zarp zarp zar

Era o som do motorzinho

De uma Singer a costurar...

Que alegre era ela

Sete filhos a cuidar

Feito uma leve gazela

Ela cantava... cantava...

Sem nunca se lamentar!

Zomp zomp zom

Zarp zarp zar

Era o som do motorzinho

De uma Singer a costurar

Recordo os meus vestidos de organdi, então adolescente, de saia longa, com babados e sianinha! E não esqueço o São João caipira quando todos tinham a sua fogueira na frente de casa. Era importante colocar uma faca na bananeira. Quando a tirávamos, devia-se ver a primeira letra do nosso futuro príncipe encantado. Sempre se consultava a bacia d´água, junto da fogueira, para ver o nosso rosto refletido (que ninguém queria morrer naquele ano!). 

E as serenatas... Ah! As serenatas na calçada da igreja matriz, embaladas em doces canções no violão... 

“Sertaneja se eu pudesse

Se papai do céu me desse 

O espaço pra voar...

Eu corria a natureza

Acabava com a tristeza

Só pra não te ver chorar!”

Saíamos da cama para abrir uma brechinha da janela e ver os seresteiros. Suas vozes nos permitiam adivinhar o cantor... no desejo de ser a felizarda a quem ele se dirigia. 

Da minha família, restou-me a profunda marca da ternura e da alegria, feito dia de Páscoa e de Natal: os cuidados da minha mãe, como se fossem durar a vida inteira! O zelo do meu pai, como se jamais me fosse faltar!

Por Vanise Rezende

 

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