Prezado Paulo
Lendo o livro Baraúna, escrito por Zé Carneiro, em certa parte destinada à memória da Várzea, ele recomenda como complemento a leitura da minha crônica sobre essa tão importante rua. Lembrei-me então que em certa época houve um problema com o seu servidor de onde "sumiram" várias publicações, entre elas a minha crônica.
Hoje lembrei-me que tenho um Disco rígido que pertenceu a um notebook e uso eventualmente como backup. Fui procurar e lá estava a minha crônica sobre a Várzea. Aproveitei e fiz um reparo (edição) histórica, consertando um erro de pessoa.
Diante dessa recomendação de Zé Carneiro, solicito encarecidamente a você, colocar de volta essa crônica na minha "página" do nosso tão querido blog.
Por Jailson Vital de Souza
vár.zea
sf 1 Campina cultivada. 2 Planície de grande fertilidade. 3 Terrenos baixos e planos, sem serem alagadiços, que margeiam os rios e ribeirões.
Se fôssemos definir a Várzea, bairro (?) de Custódia, nos meados dos anos 50, não seria possível encaixá-la exatamente na definição do dicionário citada acima. No entanto a definição não é de todo inapropriada. Naqueles anos a Várzea começava no pé da ladeira (que ia do prédio do Forum onde hoje é a Biblioteca Municipal até onde hoje é a casa construída pelo Sr. Luiz Amaral) e terminava na casa do sítio de dona Izaque Lopes.
Havia um espaço entre o pé da ladeira e a casa do sêo “Pedrinho da banca”, que não tinha nenhuma construção. Não havia ainda o clube, e os alicerces da casa do sêo Luiz Amaral foram erguidos alguns anos mais tarde. Esse espaço é que em alguma época de grandes chuvas poderia se assemelhar a uma várzea, pois corria aí um riacho que vinha das terras mais altas do sêo João Miro e barrado pela estrada da várzea inundava as terras a montante.
Havia na estrada uma pontezinha de madeira sob a qual o riacho se metia para logo depois se espraiar por todo o espaço onde hoje é o clube, tomando o nosso campo de futebol, “a grama”, invadindo o sítio de dona Nita Remígio onde aguava os altos coqueiros, o canavial e as mangueiras da manga rosa mais cheirosa e saborosa que eu já chupei, passava por baixo da ponte da BR 232 e ganhava a Mata Verde. Aqui faço um parágrafo para explicar que a BR 232 nessa época passava pelo cemitério, pela Av. Inocêncio Lima (A Bomba) e seguia por onde hoje é a rodoviária.
Não volto ainda ao ponto onde deixei a narrativa. Volto devagar e demoro-me um pouco na “grama” e aí me vejo jogando bola, embora fosse um perna de pau, pois sendo asmático não tinha muito fôlego para correr atrás dela, mas me vejo jogando pião, bola de gude, enterrando ferrinho, derrubando “pitelo” de castanha de caju ou prendendo besouro em caixa de fósforo para ouvir o zumbido dele tentando se soltar. Era a “grama” também o palco das “rolétas” como eram chamadas as brigas em que os parceiros se agarravam um tentando derrubar o outro, brigas essas muitas vezes incentivadas pelos companheiros para se divertirem.
Pronto, retomemos a narrativa a partir da casa do sêo Pedrinho que ficava no lado direito da rua. Desse ponto em diante havia casas dos dois lados. Permitam-me citar como referências algumas pessoas do meu conhecimento e das minhas lembranças que moravam lá, assim como algumas construções. Após a casa do sêo Pedrinho morava a minha primeira professora, dona Alexandrina, a família de sêo Abílio Moura (Abílio “cacundo”) e havia algumas casas antes de se chegar à casa de força do grupo gerador, motor como chamávamos, que fornecia energia elétrica a toda Custódia. Além de energia o “motor” fornecia também um barulho ensurdecedor à vizinhança. Barnabé o encarregado de seu funcionamento deve ter terminado os seus dias, surdo.
Logo depois do “motor” havia duas construções que merecem ser citadas. Do lado esquerdo o posto de saúde e do direito o dispensário. O dispensário deveria ser uma entidade destinada a abrigar indigentes. No entanto ficou apenas na intenção, pois a construção se resumiu aos alicerces, à fachada e dois quartos, um de cada lado da fachada. Em um dos quartos morava “Maria doida” e no outro um maluco do qual não me lembro o nome (Luiz?, Catrevagem?), mas que se irritava quando a meninada fazia a pergunta: onde está a guerra ? Ele respondia: a guerra tá embaixo do chão e depois corria e atirava pedra na meninada.
Diante da inusitada pergunta e da resposta não sei bem se o maluco ficava atrás da pedra ou estava correndo à frente dela. Atrás do dispensário, um pouco mais afastado ficava o “cemitério velho”, abandonado e com muitas lápides de suas sepulturas quebradas deixando à mostra as ossadas. Depois do dispensário havia um espaço sem casas para depois recomeçar. Desse lado morava a família do marceneiro sêo Lunga e dona Lindalva que eram vizinhos dos meus pais, sêo Zé Vital e dona Jandira. No lado esquerdo havia a marcenaria do sêo Lunga, a casa de Adamastor e de sêo Catonho Florêncio. Ficava desse lado também um casarão de cumeeira alta onde morava Antuza.
Ao lado do casarão tinha uma estrada que conduzia aos fundos deste e à porteira de entrada do sítio de dona Nita. Faço aqui uma pausa para prestar homenagem a um morador do sítio de dona Nita que era personagem das festas religiosas de Custódia. Zé Biá era exímio flautista que com seu pífano de taboca acompanhado por companheiros no zabumba, triângulo e outro pífano fazendo segunda voz animava as festas. Retorno mais uma vez a descrever a Várzea.
Depois do casarão, do lado esquerdo, recordo que tinha apenas uma pequena bodega e um largo espaço sem construções antes de chegar ao chafariz de sêo Duda do Banheiro. O chafariz ou banheiro como também era chamado era um prédio com uma grande caixa d’água que era abastecida de um cacimbão construído ali mesmo. A fachada enegrecida parecia ter levado uma mão de cal apenas na inauguração sabe-se lá quantos anos atrás. Dela saiam duas grossas torneiras de ferro que jorravam a água para as latas de 20 litros dos que lá iam se abastecer. Pagavam cada lata d’água com uma fichinha de flandres marcada a punção que haviam comprado antes. Dentro do prédio havia vários banheiros igualmente sujos e de chão escorregadio, onde muitos homens iam tomar seu banho semanal. Pagavam igualmente com uma fichinha. Fazendo outra pausa nessa caminhada esclareço que sêo Duda do Banheiro não é o mesmo que sêo Duda Ferraz.
Este poderia ser considerado um multi-empresário da sua época. Atuava como mecânico dando suporte à manutenção do grupo gerador que fornecia energia à cidade, juntamente com seu filho Adamastor e Zé de Isaías. no ramo do entretenimento (Parque de diversão, constituído de canoas e carrossel que ele e novamente com Adamastor, construíam) e no ramo da comunicação (Serviço de alto-falantes: Difusora Duas Américas). Embora atuasse nessas 3 frentes, não tinha sequer 1 empregado. Trabalhavam para ele o filho Adamastor e 3 filhas. Sêo Duda Ferraz morava próximo à “grama”, na fronteira entre a Várzea e a rua “de baixo”.
Bom, voltemos a caminhar, porém agora do lado direito da rua pois do lado esquerdo depois do chafariz não tinha mais nada, era somente roça. Depois da minha casa havia somente umas 4 casas antes de começar o muro que cercava uma fábrica abandonada. Tinha uma chaminé alta, vários tanques e montes do que parecia um pó grosso de madeira, de uma cor avermelhada que chamávamos de tanino. Provavelmente tinha sido um curtume que algum tempo depois foi reativado por sêo “Manuel do curtume” um viúvo, pai da bela morena Jandira.
Depois do curtume havia igualmente no lado direito, um grande vazio para depois surgir o sítio do sêo Zé Major, um senhor moreno, alto e cego que criava vacas e vendia leite para a população. Depois do sítio de sêo Zé Major tinha umas poucas casas onde morava sêo Fantim Simões pai de Totonho e onde chegado de Betânia veio morar também sêo Anfilófio pai de uma penca de filhos entre os quais Tadeu, Maristela e Célia. Daí para diante era somente vazio até chegar a casa de dona Izaque Lopes. Hoje para vencer essa distância entre o pé da ladeira e a casa de dona Izaque é um pulo. Naquela época era uma viagem com algumas aventuras no meio. Eu com certeza tive as minhas.
Vitória – ES, 07 de setembro de 2007
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