24 dezembro, 2021

Conversa de amigos - autor Jorge Remígio

José Farias e Djalma Moisés(In Memorian)


No ano de 2017 fiz uma viagem para Custódia e levei o meu sogro, Djalma Moisés (1932-2021). Saímos de Recife com outros familiares no carro, mas as atenções eram para ele. Afinal, fazia anos que não retornava à sua cidade natal após ter ido residir em João Pessoa. A sua felicidade era difícil de disfarçar, estava explícita em seu rosto, e a ansiedade de chegar e ver os amigos ou mesmo pisar no solo do torrão querido lhe deixava contemplativo boa parte da viagem.

Após o desembarque na Rua Fraga Rocha, retirada das bagagens e pequenas arrumações, tratei logo em chamá-lo para fazer uma visita ao meu tio Zé Farias (1933), amigos desde a longínqua infância, o qual residia próximo. O reencontro deles foi carregado de uma alegria contagiante e após nos acomodarmos nas cadeiras, sugiram as primeiras conversas triviais, mas eu via ali uma boa oportunidade de puxar conversa onde eles relatassem fatos passados na juventude ou mesmo na remota infância daqueles dois amigos.

Era necessária a espontaneidade, mas uma sutil condução seria viável, eu tinha que estimular e mostrar curiosidade. Surgiu uma conversa e, pela idade que se enquadravam, deviam ter em torno de onze e doze anos, em 1943 ou 1944. Se referiam ao curral da Intendência. Não sabiam dizer o ano da construção desse curral, mas foram unânimes em dizer que, no início da década de quarenta, a cidade nos dias de feira tinha problemas com a quantidade de animais de montaria que aportavam nas ruas. Não havia árvores, cercas ou local suficiente para amarrá-los, como também, a quantidade de esterco produzido pelos animais era imensa, sujando toda a cidade e o curral da Intendência supria em parte essa demanda.


O interessante dessa história é que eles ganhavam uns tostões nos dias de feira, levando animais dos feirantes para o curral da Intendência que se localizava na parte alta da cidade, por trás de onde é hoje a Delegacia de Polícia e a Cadeia Pública. Cada animal tinha um número de referência para facilitar o resgate. No final da tarde a meninada ia até as bodegas, mercearias e pátio da feira, e abordava os feirantes oferecendo os serviços para pegar os animais estacionados no curral. No caso, eles eram “manobristas” de cavalos e jumentos, e as moedas eram certas, pois, subir a pé até a parte alta da cidade em um final de feira, não era interessante para ninguém, muito menos para quem já tivesse tomado algumas bicadas de cachaça.

Naquela época não havia construções no local, era ermo, com muito mato em volta. Despontavam algumas casinhas de taipa onde posteriormente batizaram de rua da remela. Eu perguntei para eles se sabiam o que era Intendência. Desconheciam. Então, falei que era uma administração, um governo. Intendência era equivalente a prefeitura. Falei que a partir do ano de 1905 até 1930, o prefeito tinha o nome de intendente e a prefeitura de intendência, vindo a mudar só após a Revolução. É motivo de pesquisa, mas, esse curral pode ter sido construído quando Custódia era ainda vila de Alagoa de Baixo, hoje Sertânia, ou mesmo na administração Nemésio Rodrigues (1929-1930).

Depois de um cafezinho, a conversa fluiu mais animadamente e as histórias foram surgindo sucessivamente. Claro que eu me colocava quase como um contemporâneo dos dois e botava combustível nos assuntos, norteando para meus interesses, que era a própria memória da cidade. Tudo que conversavam era parte da nossa história, portanto, eu tinha que escrever tudo aquilo posteriormente.

Puxando conversa, falei que em Custódia já tiveram uns delegados brabos, citando Sargento Deodato Pereira, Tenente Lero, e enquanto falava, o meu tio Zé Farias pegando o gancho, falou que nos anos quarenta, tinha um Delegado conhecido por Sargento Sé, que era muito bruto, e citou um fato ocorrido no carnaval de 1941, quando ele tinha oito anos de idade, envolvendo o irmão dele, no caso, o meu tio Erasmo.


Erasmo Farias


Os papangus eram o terror da criançada e eu sei muito bem desses medos, senti na pele nos primeiros anos da década de sessenta durante os carnavais. Jovens rapazes da cidade se vestiam com roupas pesadas, mascarados, mudavam a voz e com um relho, espécie de chicote, pregavam medo nas crianças, porque eles batiam mesmo. Tio Zé falou que o irmão Erasmo foi papangu naquele carnaval de 1941, e na segunda feira no final da tarde, nas imediações onde hoje é a sorveteria de Olímpio Marinho, um menino conhecido por João Boi de Caó, irmão de Louro, teve a infelicidade de ficar frente a frente com o papangu.

Tentando se livrar das chicotadas e aterrorizado, correu na direção da Farmácia Pereira sendo perseguido pelo mascarado que a qualquer momento iria lhe alcançar. João Boi de Caó avistou vários homens reunidos em frente onde hoje fica a Varandinha de Vavá, e vislumbrou a sua salvação justamente naquele espaço. Pessoas ao lado já desmontavam as bancas de feira e nesse movimento todo, João Boi de Caó quase esbarra no povo e o papangu que vinha no seu encalço, quase colado à vítima, desferiu o relho com todas as suas forças na direção do menino. Por azar do papangu, a chicotada atinge o quepe do Delegado Sargento Sé que é arremessado à distância. O delegado tomado de extrema raiva, arranca a máscara do papangu, desvendando a sua identidade e manda de imediato recolhê-lo à Cadeia Pública que ficava na época, na lateral do atual prédio da Câmara dos Vereadores, de frente para Praça Ernesto Queiroz.

Meu tio Zé Farias falou que foi um alvoroço medonho, a mãe chorando devido a prisão do filho, então, procuraram o tio Apolônio Carneiro, o qual já tinha uma certa projeção econômica na cidade, para interceder junto ao delegado e demovê-lo daquela posição. Enfim, Erasmo foi liberado. Porém, ficou muito revoltado e com vergonha, disse que iria embora para o Recife, entraria na briosa e só retornaria à Custódia, no mínimo, como Capitão. Ele pensava em uma revanche com o Sargento Sé.

Não foi fácil o seu ingresso na Polícia Militar, pois só tinha 17 anos, mas, com a ajuda do Sargento Pompeu Florêncio, conhecido da família, conseguiu entrar na PM. A documentação na época não era tão rígida como nos tempos atuais e providenciou-se outro registro de nascimento. Tio Erasmo passou quarenta anos na Polícia Militar como soldado, aposentou-se como sargento porque durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou na costa, em zona praieira. Não cumpriu a promessa, como também nunca soube do paradeiro do Sargento Sé.



Genésia Mariano de Rezende. 101 anos e 6 meses.


Lembrei de um fato bem interessante que dona Genésia Rezende (1920) havia me falado na casa de Elzir Valeriano. Interessante, até porque se enquadrava nessa mesma época em que os assuntos se desenrolavam. Falei para os dois amigos que Genésia Rezende, prima legítima de Djalma, tinha me dito que no ano de 1944 ou 1945, estava sentada em uma cadeira na calçada da sua casa, quando o Capitão Manoel Neto (1901-1979), dirigiu-se a ela pedindo um copo com água. Ela trouxe a água e ofereceu uma cadeira, ele aceitou a gentileza, mas não deu as costas para rua e a todo instante olhava para os lados. Ela observou esse detalhe curioso e depois soube que ele tinha feito muitos inimigos no cangaço.



Capitão Mané Neto em campanha contra o Cangaço eem Recife, provavelmente em 1947

Os dois conversaram bastante, dizendo ela que Manoel Neto era galante, educado, fino e elegante. Um professor do amor, pois dava muitas explicações sobre namoro e o casamento.

Nesse momento em que conversavam, passou a sua sobrinha Livanise, apelidada de Lili, filha de sua irmã Carmélia e Manoel Moura e pediu a sua bênção. Manoel Neto perguntou quem era a menina, respondendo ela que era sua sobrinha. Então, ele perguntou se a garota podia levar um bilhete até o serviço de alto falante, que se chamava difusora, pois, queria oferecer-lhe uma música. Ela aceitou e minutos depois ouviram a música “Samaritana”, oferecida com muito carinho e admiração. Ainda lembrava da canção e cantarolou uma estrofe para mim.



Coronel Mané Neto já envelhecido durante a década de setenta, dando entrevista para um jornalista, na cidade de Ibimirim-PE, onde residia.


“Samaritana eu vou beber água em sua fonte, guardarei esse amor se Deus quiser, desde o dia em que te vi nunca mais senti outra mulher”. Eu falei que o Mané Neto estava paquerando-a, e ela respondeu que naquele tempo falavam conquistando ou “tirando uma linha”. Achei engraçado esse termo. Falar em Mané Neto pareceu até um mote, porque o meu tio Zé Farias lembrou de um fato inusitado ocorrido com o famoso militar nessa mesma época, entre 1944 e 1945. Disse que as festas dançantes ocorriam no Bar Fênix, de propriedade de Alfredinho, filho do primeiro casamento de Dona Olindina Queiroz, e geralmente era aos domingos no período da tarde, findando no início da noite. Que em uma dessas festas, Eurico Queiroz, irmão de dona Olindina e dona Elisa Queiroz, o qual era casado com Iraci, irmã de Luiz Epaminondas de Barros, chamou Consuelo Aleixo para dançar, a qual recusou o convite. Era o famoso “corte”.

Porém, no mesmo instante, o Capitão Mané Neto fez o convite para aquela dança, e ela levantou-se tão rápido que Eurico ainda estava ao lado. Claro que este não gostou nada daquela atitude e de imediato passou a questionar aquele procedimento discriminatório. Quem não gostou também foi o Capitão Mané Neto que se sentiu afrontado e ferido em seu ego. Houve bate-boca entre os dois e em seguida, voz de prisão por parte do Capitão.

No meio do tumulto, Eurico correu para sua casa que ficava onde é hoje o consultório da Dra. Olga Gois. Após muitos pedidos de pessoas da cidade para o Capitão Mané Neto, o qual era Delegado de Sertânia, alegando que Eurico pertencia a uma família influente politicamente na cidade, inclusive, era parente do Prefeito Ernesto Queiroz, a questão foi encerrada ali mesmo e os ânimos serenaram. Nesse momento da conversa o meu celular tocou. Atendi já imaginando do que se tratava. Realmente, a mesa já estava posta. Disseram que o bode fumegava e a cerveja estava estupidamente gelada. Era uma pena, mas a conversa teria que ser interrompida naquele momento, porém, com a promessa de prosseguir em outro momento.



Consuelo Aleixo de Souza.

Nos despedimos, e ao entrar no carro com seu Djalma de volta à Fraga Rocha, fui pensando durante o trajeto. “A minha prima Consuelo foi o pivô de um conflito envolvendo o maior perseguidor de Lampião. O dito cujo o apelidou de “Mané Fumaça” e reconhecia ele como seu inimigo mais contumaz dentre todos os Cabras de Nazaré. Mané Neto dedicou toda sua juventude à perseguição aos bandos de cangaceiros, principalmente ao bando de Lampião. Foi ferido várias vezes nos embates ferrenhos, chegando a combatê-lo, além do Estado de Pernambuco, nos Estados da Bahia e Sergipe por um certo tempo”.

Posteriormente eu falei para seu Djalma e para meu tio Zé Farias, toda a saga de Mané Neto durante o período do cangaceirismo nos anos vinte e trinta e sua participação durante a Revolução de Trinta. Eles ficaram sabendo, mas com certeza a prima Consuelo faleceu desconhecendo todos esses detalhes.



Recife, 21 de dezembro de 2021
Jorge Remígio

5 comentários:

  1. Gostei muito, Jorge. Interessantes comentários do ontem da nossa Custódia. Abraço

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  2. Parabéns Jorge, a riqueza de detalhes faz com que façamos uma viagem no tempo e mesmo sendo de outra época da nossa, até parece que estavamos lá vivenciando com eles todos os momentos.

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  3. Caro Jorge Remígio, você é um cabra da peste com uma memória singular! Faço vênia à sua capacidade de registrar, com tantos detalhes,as suas memórias de Custódia. Parabéns!

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  4. Primo Jorge, gostei e achei interessantes os comentários da nossa Querida Custodia. Gostei das participações do meu Querido pai José Farias e meu tio Erasmo( memorian ) e minha Consuelo.
    Os outros eu não conhecie .
    Parabéns!!!

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