Por Antonio Marlos Duarte
Juazeiro/CE
Abril/2021
Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, e seu bando passaram pela cidade de Custódia algumas vezes durante a vigência do Cangaço em terras nordestinas, sendo a última datada em 11 de fevereiro de 1925, quando Custódia ainda não tinha se emancipado politicamente, sendo ainda considerada Vila. Durante essas visitas pra lá de indesejáveis, o destino entrelaçou meu avô, Abílio José Duarte, Depositário Público e Fiscal do Município da época, e o chefe do Cangaço. Após esses encontros, meu avô registrou, com sua linda letra enfeitando um papel hoje envelhecido, como tinha desapreço pelo bandido e que este tinha plena consciência do desprestígio que tinha junto ao meu avô. Com o tempo, foram surgindo histórias dos bastidores que rolavam nesses encontros com Lampião e, alguns, fugiam um pouco da veracidade dos fatos, mas, sem dúvida alguma, é muito curioso como, depois de quase 50 anos da morte do meu avô, as pessoas ainda lembram dele e ainda escrevem sobre ele.
O Sr. José Melo, em uma publicação neste mesmo Blog Custódia Terra Querida, neste ano de 2021, é uma dessas pessoas que conheceu meu avô. Ele narra uma dessas histórias, contando que meu avô inicialmente era amigo de Lampião. Abílio José Duarte, atuando como um servidor público, conseguia muitas vezes que o cangaceiro atendesse alguns pedidos feitos por ele e pelos habitantes da cidade da época. A amizade teria se desfeito após desavenças criadas por terceiros, tendo Lampião cortado as boas relações e feito uma ameaça de morte: “Diga a Abílio que quando eu me encontrar com ele, vou cortar a corcunda dele de facão”.
Meu avô adquiriu uma deformidade na coluna vertebral chamada Cifose após uma queda de cavalo e, na linguagem popular, essa deformidade é conhecida como “corcunda”, daí faz sentido a suposta ameaça. José Melo ainda narra como meu avô conseguia escapar dos ataques de Lampião e de seu bando, em fugas cinematográficas, dignas de Hollywood. Embora seja uma história muito difundida entre os habitantes custodienses da época, o próprio José Melo afirma que não pode afirmar ou não se há veracidade nessas informações. Escutei esta história, inclusive, muitas vezes pelas pessoas que conheceram meu avô, porém a família não confirma tais informações.
Segue abaixo o link da publicação de José Melo neste mesmo Blog (Recomendo leitura):
http://custodia-pe.blogspot.com/2021/03/abilio-jose-duarte-por-jose-melo.html
Foto: Acervo Familiar
Abílio José Duarte, sentado em um carro de boi,
juntamente com seu primo, o ex-prefeito de Custódia, José Gonçalves Florêncio.
Meu avô escreveu muitos livros, mas, infelizmente, alguns foram perdidos no decorrer dos anos, porém outros foram guardados. Em um deles, Abílio José Duarte referiu ao bando de Lampião como uma “patética cangaceira”, comprovando mais uma vez que meu avô não tinha simpatia alguma pelos seguidores de Virgulino Ferreira da Silva. Ainda, meu avô descreve que viu muitos homens trabalhadores sendo destruídos durante a passagem de Lampião nos torrões custodienses. A família também confirma que Abílio José Duarte não gostava quando Lampião se escondia na Fazenda Cacimba Limpa, de seu tio que o criou, José Josino.
Essas permanências de Lampião nesta fazenda perduravam até três dias e a insatisfação de meu avô só aumentava, referindo o cangaceiro como um homem que vivia dos sacrifícios dos outros. Essas passagens de Lampião pela Fazenda Cacimba Limpa do tio José Josino são descritas no livro “Lampião: Cangaço e Nordeste”, de Aglae Lima de Oliveira, publicado em 1970, da Editora O Cruzeiro.
No livro “Lampião: memórias de um soldado de Volante – Volume I”, de João Gomes de Lira, publicado em 1997, o autor narra várias histórias sobre as andanças de Lampião nos sertões nordestinos, incluindo a última passagem dele pela cidade de Custódia. Neste relato, o autor cita o meu avô, Abílio José Duarte.
Segue o texto:
“EM CUSTÓDIA
De Cachoeira, Lampião seguiu para a Ribeira do Ingá, em Custódia. Para
ali, foi ele com o fim de receber o dinheiro dos comerciantes de Custódia, pois
havia marcado o dia 10 de Fevereiro, mas, neste dia, estava brigando na
Cachoeira, comparecendo ali apenas no dia 11, onde só encontrou esperando o Sr.
Abílio José Duarte. Lampião, avistando-o, foi logo dizendo que vinha com
muita fome e sede, queria água e comida.
Procurou pelo pessoal do dinheiro. Abílio respondeu que haviam cumprido o trato no dia anterior, 10 de fevereiro, como tinha Lampião marcado. Respondeu ele que, no dia anterior, não foi possível chegar porque estava brigando com os macacos de Nazaré, na Cachoeira. Lampião, preocupado, perguntou o que faria para receber o dinheiro. Abílio respondeu que só fosse ele até Custódia. [Lampião] perguntou se não tinha soldados. Respondeu, Abílio, que dois, somente. Lampião disse: “Dois é café pequeno para mim. Vamos até lá!” Lampião queixou-se que havia viajado muito, estava enfadado. Abílio arrumou um animal para Lampião. Chegaram em Custódia, três e meia da tarde do dia 11 (quarta-feira).
[...]
Em Custódia, Lampião redigiu e deixou no telégrafo um telegrama para o
Exmo. Governador do Estado. [...] No telegrama comunicava a miúdo o Governo, a
sua entrada em Custódia. Este acontecimento, disse, verificou-se sem
anormalidade. Adiantou mais o bandido que tudo no sertão corria
maravilhosamente bem. Pediu que o governo não mandasse mais tantos “macacos”,
que já estava ele cansado de matar tantos “macacos”. Que o Governo viesse mesmo
ao sertão conhecer de perto o famoso Lampião. Disse mais que o Governo mandava
das “pancadas do mar” [Recife] até as “pancadas dos trilhos”, em Rio Branco
(atual Arcoverde) e que ele [Lampião], mandava das “pancadas do São Francisco”
[Petrolina] até Rio Branco (atualmente Arcoverde). Estava, assim, dividido o
Estado em dois executivos.
[...]
Para agradar o bandido, um comerciante saiu no comércio fazendo
arrecadação em dinheiro, tendo conseguido tirar oitocentos mil réis, ficando o
bandido muito satisfeito com esta importância e muito mais com o povo de
Custódia. Também deram ao bandido liberdade de utilizar-se, em qualquer lugar,
daquilo que lhes pertencesse. A visita do bandido à Custódia prolongou-se até
às doze horas da noite. Matou ali um boi, dividiu toda a carne com o grupo.
Tudo resolvido, mandou tocar e, na escuridão da noite, desapareceu, seguindo na
estrada de Samambaia, de onde tomou destino ao Estado de Alagoas. No dia
seguinte, chegaram do Estado da Paraíba, em Custódia, os Tenentes Francisco de
Oliveira e Joaquim Adauto (conhecido por Tenente Quincó), em perseguição aos
bandidos. Em Custódia, os oficiais paraibanos prenderam o telegrama, sendo
assim transmitiram do mesmo.”
LIRA, João Gomes de. Lampião: memórias de um soldado de Volante – Volume I, páginas 195-198. Floresta, Pernambuco. 1997.
O autor deste livro, João Gomes de Lira, entrou para a Polícia Militar em 16 de julho de 1931,e depois teria se alistado como soldado na Volante contra Lampião aos 17 anos de idade, na sua cidade natal (Flores), devido o cangaço ameaçar constantemente aquela região. As filhas de meu avô, incluindo minha mãe, não confirmam os fatos narrados pelo livro,porém esses relatos de João Gomes de Lira devem ser valorizados, pois ele foi testemunha ocular do ocorrido.
Abílio José Duarte nasceu em 7 de outubro de 1890: um ano após o golpe da República, que deu fim ao Império do Brasil e algumas décadas antes da emancipação política de Custódia. Nasceu em Cacimba Limpa (próximo ao povoado Ingá) e foi criado pelo tio José Josino. Como registrou a próprio punho em um pequeno manuscrito, meu avô comentou que foi nesta fazenda que deu seus primeiros passos e brincou nas sombras dos Umbuzeiros. Frequentou uma escola particular em 1901 e no ano seguinte passou para a escola pública. Após disso, teve de assumir e zelar a Fazenda Cacimba Limpa após a morte do tio. Meu avô cresceu e tornou-se servidor público do Poder Judiciário, na posição de Depositário Público e Fiscal do Município e, nesta posição,foi colocado em prova várias vezes por pessoas que queriam vantagens em negociatas, mas nunca se subjugou a subornos ou coisas do ramo. Pessoas que queriam ser privilegiadas em divisões de terras de heranças ficavam frustradas quando sabiam que seria meu avô o responsável por iniciar o inventário. Meu avô nunca aceitou a ideia de ser um qualquer corrupto da Justiça, sendo reconhecido por todos.
Em seus
manuscritos ainda preservados, descreveu que muitas vezes “bateu nas portas
alheias para ver a paz entre famílias, mas havia grande ódio e ambição de poder”.
Após 48 anos de sua morte, ainda existem pessoas vivas que conviveram com o meu
avô e que, além de minha mãe e minhas tias, repassam-me várias histórias confirmando
um Abílio José Duarte como um homem digno, honesto, inteligente, sábio e
incorruptível.Já aposentado, com 82 anos, no seu último dia de vida, meu avô
caminhava em direção ao Cruzeiro para visitar uma prima recém chegada do Recife,
quando foi atropelado por um carro.
O acidente gerou muita repercussão e
revolta na cidade, mas meu avô, em suas últimas palavras, demonstrou mais uma
vez sua grandeza e falou: “Deixem isso para lá! Tudo tem seu tempo!”
Há, na
cidade de Custódia, uma rua com o nome de meu avô. A Rua Abílio José Duarte
encontra-se próximo onde hoje funciona o BEPI (ex-CIOSAC). Esta justa homenagem
foi um importante reconhecimento a este exemplo de pai, esposo e cidadão. Por
fim, ficam registrados, aqui, meus fervorosos protestos de distinta admiração
pelo homem de Abílio José Duarte, o homem que enfrentou Lampião em Custódia. O
homem que tenho a honra de chamar de “avô”!
Sobre o autor
Antonio Marlos Duarte de Melo é médico e atualmente reside em Juazeiro do Norte-CE.
Trabalha nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional do Cariri, do Hospital Santo Antônio e do Hospital Geral Padre Cícero.
Muitas histórias e curiosidades sobre nosso avô e toda lenda que gira em torno de Lampião. Bom saber que nosso avô sempre teve uma postura ilibada e que o povo ainda se lembra dele, mesmo após 5 décadas.
ResponderExcluirCaraca, fiquei impressionada com essas informações pois nunca tive conhecimento delas, moro aqui na cacimba limpa e fiquei impressionada
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