05 fevereiro, 2023

O Cachorro de Ernane

Texto de Jorge Remígio
Recife, janeiro de 2023


Eu conheci Ernane em abril de 1967, ele dirigia um carro que teve um problema mecânico justamente em Custódia. Então, procurou os meus pais e dormiu em nossa casa naquela noite de chuvas torrenciais. Ele era de São José do Belmonte, e o meu pai foi muito amigo do pai dele quando morou por dois anos no início da década de cinquenta naquela cidade. Eu gravei bem essa data porque fomos acordados, na madrugada, sobressaltados com vozes que ecoavam vindo da ladeira da várzea, a qual ficava ao lado do quarto onde dormíamos. Quando olhamos pelo basculante, nos deparamos com um grande número de pessoas alvoroçadas e a água já chegando na base da ladeira a um nível nunca visto até então. Quase que gritamos. “É cheia!”. Saímos todos de casa e fomos nos juntar aos curiosos, mas vimos também muita gente arriscando a própria vida tentando salvar pertences e animais das pessoas moradoras da Rua João Veríssimo, que aflitas, deixavam tudo para trás. O nível da água subia rapidamente e, em menos de uma hora, parte daquela rua ficou quase submersa. Foi a maior enchente do Riacho Custódia que corta a parte baixa da cidade. Quando amanheceu o dia a cidade, impactada, contabilizava os estragos provocados pela força da correnteza. Sete casas destruídas totalmente e muitas com avarias, inclusive a incipiente fábrica de doces Tambaú, que funcionava ao lado da ponte da Bomba. Infelizmente, duas pessoas perderam a vida. Uma das vítimas fatais foi Luiz. Um menino ruivo, um pouco mais novo do que eu e muito conhecido na cidade. Lamentamos imensamente essa fatalidade.



Ernane só retornou a nossa cidade no ano de 1971. Fez amizade rapidamente com os jovens farristas, e o que não faltava eram festas e pileques homéricos. Namorou com nossa amiga, Mabel, e passou a vir com mais frequência. Nessa época o nosso “point” era o bar de Gerson Queiroz, mas conhecido por Deta, dono do famoso Ponto Certo, localizado na Praça Padre Leão. Naquele tempo, próximo da Padaria de João Miro e Dona Jovelina, hoje ao lado das Lojas Americanas. Esse local atraia toda juventude da cidade, no bar tinha uma radiola, e interessante era o nível dos discos de vinil que Deta comprava. Conheci o LP Índia, de Gal Costa, ali. Como também os sucessos de Gil e Caetano eram lugar comum. O grande Paulinho da Viola e depois o estrondoso sucesso dos Secos e Molhados no início de 1973, vivenciamos tudo isso no caloroso Ponto Certo. No ano de 1972, o roqueiro Raul Seixas conquistou não só os jovens, mas também pessoas de mais idade. O pesqueirense Paulo Diniz não saia das paradas desde o seu disco lançado no ano de 1970. Porém, confesso que o som revolucionário, para todos nós, foi o surpreendente Tim Maia. Que coisa extraordinária aquele vozeirão potente cantando músicas românticas, mas também nos mostrando um ritmo inovador. Era o “Soul” que ele trazia das suas experiências com a música negra dos Estados Unidos. A turma não tinha um violonista, mas improvisávamos e não deixávamos de cantar fazendo um batuque na mesa em que bebíamos. Marcas deixadas nas falanges dos meus dedos são testemunhos dessa época de juventude. Ferdinando Feitosa, se não fizesse medicina, tinha entrado para o mundo da música. As opções para divertimento não eram muitas, porém fazíamos de tudo um motivo para comemorar seja lá o que fosse.


Sport de Custódia, fundado em 1971 por Dr. Pedro Pereira Sobrinho


Flávia Epaminondas campeã da Calourada


Minha irmã Eliane Remígio, declamando no J. Melo Show em 1972


Nos domingos à tarde no CLRC, Zé Melo apresentava o seu programa de variedades, J. Melo Show. Os calouros eram a atração maior, pois todos que participavam almejavam um dia uma carreira de sucesso. Flávia Epaminondas ganhou quase todos os programas, era uma menina notável. Esse programa se revezava com os jogos do Sport de Custódia, time criado por Dr. Pedro Pereira, tendo seu auge ente os anos de 1971 e 1973.


Tadeu Burgos, com 16 anos e Otacílio Góis com 17 anos no carnaval de 1973 no CLRC


Carro DKV


O dia quatro de novembro de 1972 caiu em um sábado. Aniversário de Otacílio Góis que completava 17 anos. Tudo conspirava a seu favor, pois o dia de finados na quinta feira ocasionou um feriadão. Ávido por uma agitação naquele final de manhã, se dirigiu em passos apressados para o ponto onde todos nós convergíamos, o Ponto Certo. Ao chegar e já um pouco atrasado, deparou-se com parte da turma nas atividades etílicas e, para sua surpresa, Ernane, em suas idas e vindas, tinha chegado em nossa cidade com um DKV, o qual estava na frente do nosso templo. Esse carro tinha saído de linha em 1967, porém, ainda conservava o seu charme. Aliás, nós não tínhamos nem um violão, um DKV tendo lá qualquer ano de fabricação já era uma suntuosidade. O aniversariante ainda totalmente abstêmio, foi convidado a entrar no veículo, iam todos para uma inauguração de um grupo escolar municipal na zona rural, mais precisamente na Boa Vista, distante uns trinta quilômetros de Custódia. Embarcaram nessa aventura, além do motorista Ernane, Marcos Moura, Francisquinho Santana, Luciano Veríssimo e o aniversariante Otacílio Góis. Zarparam a toda velocidade na direção da Bomba. O DKV com motor em dois tempos já era zuadento por natureza, e com a descarga aberta então, provocava um barulho ensurdecedor. Ao subirem a ladeira da Inocêncio Lima, chegando no cruzamento que leva ao hospital, pararam para dar passagem a Dr. Moura que vinha em seu Fusca. Todos muitos alegres, cumprimentaram o médico cirurgião da cidade, o qual perguntou para onde aquela rapaziada se dirigia. Responderam de pronto, que iam para uma festa na Boa Vista. Dr. Moura, ironicamente, falou que iria preparar a sala de cirurgia. Todos riram da piada e tome pé no DKV, que desceu a ladeira do cemitério deixando uma nuvem cinzenta de poeira. Avançaram pela estrada vicinal de barro e cascalho, cortando os sítios Serrote, Cedro, Fazendinha, Carvalho, Lagoa da Onça, Riacho Novo, despertando curiosidade aos habitantes rurais que saiam de suas casas para saber que diabos era aquilo que espantavam os pássaros e assombravam os cachorros.

O aniversariante mesmo sendo chegado a aventuras, não se sentia bem naquele rally. Estar sóbrio, nesses momentos, realmente é constrangedor. Mas ele pensou, há poucos metros vamos cruzar o leito seco do rio, então o carro vai diminuir consequentemente a velocidade na areia. Ledo engano. Ao fazerem uma curva acentuada próximo de cruzarem o leito do rio, se depararam com uma rural willys parada na areia, e os seus ocupantes ao ouvirem aquele barulho estranho e inidentificável, correram para o mato e o veloz DKV chocou-se de frente com o veículo parado.

Saldo do acidente: O aniversariante teve um corte nos lábios e amoleceu alguns dentes com a pancada, Luciano com a suspeita de fratura na clavícula, Marcos Moura com um corte na testa, Francisquinho Santana e Ernane saíram ilesos. E agora? Resolveram retornar a pé todo esse percurso. Andaram poucos metros sob um sol escaldante, mas logo foram socorridos por Ferrerinha borracheiro que vinha da dita festa em seu jeep. Receberam os cuidados médicos no hospital, não sendo necessário nenhuma intervenção cirúrgica como havia preconizado o saudoso Dr. Moura.


 Conjunto Musical Os Ardentes, de seu Expedito Batista da Movelaria

Como castigo pela insensatez, os lesionados perderam o grande baile à noite no CLRC, abrilhantado pelo conjunto musical da cidade, Os Ardentes.


Ernane foi rareando as suas vindas para Custódia, e já no final da década de setenta, chegou de surpresa e antes de ir para o hotel, foi levar um presente para minha mãe Ozanira. Desceu do carro sorridente com um grande cachorro pastor alemão nos braços. O danado do cachorro era de gesso, o que causou de imediato uma rejeição das minhas irmãs Eliane e Ana Cláudia, já adolescentes, em relação ao presente. Minha mãe agradeceu, disse que gostou muito e colocou o canino em local de destaque na sala de estar. Foi Ernane sair e de imediato surgir logo esse diálogo.

-Mamãe, a senhora não vai deixar esse cachorro horrível aqui na sala, vai?

-Vou sim, minha filha. Foi um presente.

-Mas mamãe, esse cachorro é cafona, é feio, é de gesso! Isso não é uma obra de arte

-Mas vai ficar aqui, a casa é minha, então eu mando

                 Não havia argumento que demovesse ela dá ideia de tirar o cachorro daquele local. Eu confesso que ninguém naquela casa gostou do cachorro, inclusive em outra ocasião tentei fazer o mesmo que minhas irmãs, mas não obtive sucesso. Cheguei a argumentar que se o cachorro não fosse totalmente revestido de espelho quadradinhos, até que seria aceitável. Mas nada. O cachorro passou algum tempo habitando na sala, porém, um certo dia foi levado para o quartinho de despejos no fundo do quintal. Não sei explicar o motivo, mas passou anos esquecido e empoeirado naquele local. O tempo foi passando e infelizmente soubemos do falecimento do amigo Ernane, o que nos deixou triste. O meu avô materno Samuel Carneiro, foi residir na casa dos meus pais no ano de 1984, já com os seus 89 anos. Pouco tempo depois, ele teve um problema de saúde, sendo necessário amputar uma das pernas abaixo do joelho. Ele era uma pessoa muito forte, pois muitas vezes dispensava a cadeira de rodas e vinha na cadeira de balanço, apoiando o único pé no chão, forçando um movimento com o corpo que impulsionava a cadeira para frente, indo do seu quarto até a sala de estar, atravessando o corredor da casa. Ele dizia que aquele exercício era necessário e importante para ele.

                 Certo dia resolveram fazer uma grande faxina no quartinho de despejos, dispensar alguns objetos que não serviam mais, e utilizar outros ali guardados. O cachorro empoeirado e esquecido há anos, enfim foi limpo por minha mãe e reconduzido ao seu antigo pedestal. Eu não entendi o porquê do retorno, até desconfiava que nem ela gostava daquele cachorro, e também Ernane jamais retornaria à Custódia. Mas ele permaneceu lá, imponente e de orelhas em pé, parecendo um cão de guarda. O meu avô após o almoço, como de costume, se dirigiu para sala, movimentando a cadeira de balanço com um pé e o impulso do corpo, dizia que facilitava a digestão. Ao chegar na sala, ele sempre fazia uma manobra na cadeira para ficar em uma posição que visualizava bem a calçada da rua a frente. Nessa dita manobra e em um movimento brusco, o coitado do cachorro foi nocauteado. Incrível como ele ficou em pequenos pedados. Minha mãe correu para sala devido ao grande estrondo e sem noção da ocorrência, deparou-se com pedaços de gesso e imensos pedacinhos de espelhos espalhados por todos os cantos da sala. O pior é que meu avô não parava de chorar, na cabeça dele era como se estivesse provocado um grande prejuízo. Quebrado um vaso chinês de valor incalculável. Minha mãe tentava consolá-lo e varria os cacos do cachorro. Nesse momento entrei em casa e me deparei com os últimos pedaços de gesso sendo conduzidos para o lixeiro e a luz que entrava pela porta da casa reluzindo nos poucos pedacinhos de espelhos ainda não recolhidos. Minha mãe levou a última pá, mas o meu avô não se conformava com o “prejuízo” causado. Calmamente fui falando com ele, explicando que tinha sido um acidente, ele não tinha culpa nenhuma, foi uma fatalidade, mas ele ainda insistia no “prejuízo”. Eu passei a ser mais incisivo. “Vô, preste bem atenção, veja, o senhor sem querer fez um grande favor para muitos daqui de casa. Eu não gostava desse cachorro, minhas irmãs e meus irmãos também não, meu pai era indiferente, e até desconfio que a minha mãe não gostava dele. Ela só tinha respeito porque foi um presente de um amigo”. Acho que surtiu efeito, pois ele foi se acalmando, parou de chorar e a vida continuou sem o cachorro de Ernane na sala de estar.

Dedico esse texto, à memória do meu saudoso primo/irmão, Fernando José Carneiro de Souza.

8 comentários:

  1. Jorge. Precisa reunir, e eternizar seus contos em um livro.

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  2. Fernando, minha pretensão agora é está. No início, não, mas agora pretendo escrever mais umas quatro e transformar em livro físico. Seria um projeto envolvendo muita fotografia, que acho de suma importância

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  3. Gostei Jorge. Relembrar os amigos e as 'coisas' vividas é bom. Ficou bom. A lembrança de vovô Samuel na sua fragilidade emocional, pela idade e pelo viver, enriqueceu sua crônica.

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  4. Parabéns Amigo Jorge, pela maestria de registrar um tempo vivido.
    Faça da sua pretensão uma realidade.

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  5. Excelente memorial da história cotidiana de Custódia no passado. Parabéns 👏

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  6. Meu caro memorialista e cronista Jorge Remigio, gostei muito da sua história, muito bem contada com riqueza de detalhes e saudosismo, fiquei com pena ao chegar o fim. Um grande abraço e até breve.

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  7. Parabéns! Primo Jorge , registrar essas histórias.Saudades do nosso Querido avô Samuel Carneiro e o nosso Querido primo Fernando José.

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  8. Salve meu amigo Jorge… mais uma deliciosa crônica… Suas irmãs tinham razão, esses cachorros de gesso eram muito cafona!

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