07 maio, 2021

A calça dura bem - Jorge Remígio

 

Foto e texto: 
Jorge Remígio
Recife-PE
Maio/2021


Transcorria o ano de 1963 e a criançada brincava animadamente naquela manhã em seu “playground” gigante. Era a imensa Praça Padre Leão, localizada no centro de Custódia, cidade ainda bucólica com os seus menos de três mil habitantes. Descontraído, fui tomado de surpresa quando a professora Gracinha Queiroz ao aproximar-se de um grupo de meninos, veio em minha direção e perguntou se eu queria cantar uma música em um show que ela estava organizando. Imagino que ela tenha me visto cantar no grupo escolar. Fiquei um pouco encabulado, mas aceitei naquele mesmo instante. Então ela me adiantou que haveriam uns ensaios em sua residência e falou o título da música que eu iria cantar. Poema. Música de Renato Guimarães, grande sucesso romântico lançada em 1962. Aliás, a época era romântica e a seresta predominava no gosto musical de homens, mulheres e até das crianças. Era realmente uma unanimidade. Eu já tinha conhecimento desses shows que Dona Gracinha organizava. Eles ocorriam durante as férias escolares do meio do ano e, com mais intensidade, após o Natal. Era quando vinham os rapazes que estudavam em Recife, passar as férias na cidade. A maioria participava de quadros e também davam suporte na organização do evento. A turma, como se intitulavam, era composta por João Elizeu, Jailson Vital, Herbert de Né Marinho, Joelson Aleixo, Rubinaldo Rezende, Roosevelt, filho de Socorro de Zé Major, Sílvio Carneiro, Pedro Pereira, João Bosco, Rildo Rafael, Totonho e outros que me foge a memória. Eles faziam uma paródia dos programas de auditório dos dois canais de televisão do Recife, TV Jornal do Commércio canal 2 e TV Rádio Clube de Pernambuco canal 6, inaugurados em 1960. Mas, voltando à praça, tinha que avisar para minha mãe a boa nova. No percurso para casa, fui me interrogando. “Por que será que fui convidado para cantar” Na cidade tinham dois rapazes que cantavam bem e sempre estavam em destaque nesses eventos. Hermes Leandro e o João Grilo. Ah! Esse cantava demais. Porém, uma criança poderia ser um atrativo a mais. Eu tinha oito anos e nove meses e nesse ínterim, chega em Custódia o meu tio Murilo Remígio, o qual era funcionário do Banco do Brasil em Campina Grande. Boas lembranças dele nessa época. Eu e os irmãos, como também os primos, já sabíamos que seríamos fotografados e também ganharíamos dele, cédulas novinhas, com o cheiro característico do dinheiro. Coisa rara no nosso cotidiano, pois, as notas eram usadas até a exaustão. Notas velhas, rasgadas, remendadas, com “duas cabeças”, como se dizia, era muito comum. Ficávamos apegados aquelas notas novinhas, cheirando-as e sem coragem de se desfazer das mesmas. O tio Murilo era o padrinho do meu irmão Antônio, então, este sempre ganhava um presente especial e naquela visita que fez a minha avó, trouxe uma calça comprida para o afilhado Antônio. Vocês não imaginam o que era uma calça comprida para um menino naquela época. Usávamos calça curta até os treze, quatorze anos, e não era uma calça comum, era uma CALÇA DURA BEM. Ela trazia um elefante na logomarca na parte traseira. Calça marrom, com costura em máquina industrial, bolsos externos na parte de trás, uma coisa do outro mundo para nossa realidade e, claro, ficamos com uma certa inveja de Antônio, o qual não via a hora de provar o precioso presente. Chegando em casa, foi logo ao quarto vestir a calça. Para a sua grande decepção, esta ficou muito grande, folgada ao máximo. A tristeza de Antônio foi a minha alegria. O pensamento foi automático, eu era quase dois anos mais velho, caberia perfeitamente em mim. Aí me vi cantando no palco com aquela linda calça Dura Bem e em seguida, deixei de sonhar e fui falar com Antônio. Queria saber se ele poderia me emprestá-la para minha apresentação no show que se aproximava, era só uma noite e impossível de causar algum dano ao presente dele. Nem argumentei muito, pois achei desnecessário. Ledo engano, acho que aquele momento não foi adequado para fazer a proposta, ele estava irritado, visivelmente decepcionado. Tentei ponderar, mas vi que as coisas só pioravam, ele estava irredutível, não emprestava e pronto! Ponto final, como se diz. Pensei, vou recorrer a minha advogada. Claro que só a minha mãe poderia me salvar, convencendo o meu querido irmão a demover daquela posição tão radical. Confesso que minha mãe tentou, até sem muito tempo e paciência, pois cuidava da filha recém nascida e não iria se estressar para reverter aquela decisão irredutível do filho.




O show se aproximava, faltavam dois dias e durante o último ensaio, externei para Dona Gracinha o que estava ocorrendo, e via nela a minha última esperança para o convencimento em Antônio emprestar a bendita calça Dura Bem. Ela me prometeu que iria falar com ele. Foi até a minha casa e chamou Antônio na sala, falou com ele, argumentando o que eu já havia dito, mas ali existia a força do simbolismo e Antônio se sentiu até importante. Dona Gracinha Queiroz, professora, filha do prefeito da cidade, Ernesto Queiroz, fazendo um pedido para ele, então, mesmo sem demonstrar muita satisfação, cedeu. Disse que emprestava, mas que eu tivesse o máximo de cuidado para não sujá-la. Fiquei muito agradecido a ambos e também não me segurava de felicidade.

Chega o dia tão esperado. O Centro Lítero Recreativo de Custódia, que à época ficava entre o Bar Fênix e o prédio do PTB, onde hoje é o início da Rua Dr. Fraga Rocha, encontrava-se lotado. Quase não havia eventos festivos com frequência, portanto, qualquer manifestação cultural como o circo, o cinema periódico, os shows, eram sempre prestigiados pela população. Estava atrás do palco na expectativa de ser chamado. Não estava nervoso, tinha ensaiado bastante, então, não teria problemas com a letra decorada e o tom certo da música. A cortina se fecha e em seguida Dona Gracinha me avisa que a próxima apresentação seria a minha. Confesso que é inevitável um friozinho na barriga nessa hora. Me posiciono e as cortinas se abrem. Muita gente em pé, sinal que era uma super lotação. Na primeira fila visualizei meus familiares. O violonista faz a introdução e entro no tempo certo. “Poema, é a noite escura de amargura, Poema, é a luz que brilha lá no céu, Poema...” ia às mil maravilhas, porém, subitamente, já na última estrofe da música, Antônio se levanta da cadeira onde estava, na primeira fila, e grita. “tira a minha calça”. Foi um choque, fiquei desconcertado com os risos em massa da plateia, saí do tom, errei a letra e acabei a música de forma vexatória. Encerrava precocemente ali a minha carreira de cantor. Exatamente naquele domingo 14 de julho de 1963.

9 comentários:

  1. Que linda história! Criança e mesmo imprevisível, ele queria que todos soubessem que a calça lhe pertencia.

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  2. Verdade, Jorge. Vestir calça comprida com menos de 14,15 anos era um vexame.A primeira que me lembro foi para comungar a primeira comunhão.

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  3. Boas lembranças, primo. Era muito simbólico a calça comprida, marcava o início da fase de adolescente.

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  4. Belo texto !
    Excelente história !
    Apesar de ter valores diferentes se Antonio não pede prá tirar a calça , não haveria esse belo relato.
    Parabens Jorge .

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  5. Como é bom viajar no tempo. Grata por esse passeio no passado tão vivo na memória. Você está cada vez melhor! Parabéns meu primo/irmão Jorge

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  6. Amigo Jorge, você está de parabéns pelo modo como se expressões.Eu cantei várias vezes com Flavinha, nos programas do amigo.
    Ela, claro muito mais nova do que eu.Sou mais velho do que você, 4 anos.

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  7. Escreve bem quem promove a “viagem” do leitor no tempo e no espaço. Vc, Jorge me fez “viajar”. - belo texto!

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  8. Sou Carlos AP Lima - Maceió

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