04 julho, 2022

Firmino da Casa de Pedra - Autor José Melo



por José Soares de Melo

Na década de cinquenta – quando comecei a ter entendimento da vida, conheci um pouco da história de meus ancestrais. Cheguei a morar naquela que hoje seria um verdadeiro monumento à história, a Casa de Pedra, moradia construída por um degredado português, segundo ouvi dos mais velhos. Era uma construção rústica, composta de uma vasta sala, um vão que servia de cozinha e sala de jantar, e dois quartos. Suas paredes mediam cerca de cinquenta centímetros de espessura, todas feitas de pedras cuidadosamente arrumadas, sem a utilização de argamassa. Hoje as águas do Açude Marrecas encobrem as ruínas do que foi a “Casa de Pedra”.

Nessa casa foram criados o meus avô, Firmino Vieira de Melo e seus irmãos, cujos nomes não conseguir guardar, apenas o de um deles, Miguel. Meu avô era conhecido como “Firmino da Casa de Pedra”, um pequeno fazendeiro que liderava toda sua vasta família e até mesmo vizinhos na região de Cacimba Nova.

Pai de Antônio Firmino – meu pai, de José Firmino, Wlisses Firmino, Gregório Firmino e Josué Firmino, além das Filhas Januária e Noeme.

Lembro claramente da figura de meu avô, tanto no casarão que ele construiu às margens do Riacho Marrecas, quanto nas suas idas todas as segundas - feiras à cidade, para “fazer a feira”.

A casa da Fazenda era enorme, não pela quantidade de cômodos, mas pelo tamanho deles. A sala de visita era um enorme salão, com cerca de dez janelas. As paredes da casa eram construídas de enormes tijolos, e o seu piso era feito de um ladrilho brilhante, fabricado na Olaria do seu Sogro, Batistinha quem eu chamava de Padrinho Batista.

Meu avô tinha todas as característica do caboclo sertanejo: forte, atarracado, pele curtida pelo sol abrasador do sertão. Rígido, exigia a presença de todos os filhos (solteiros), em todas as refeições, nas novenas celebradas no casarão, e até nas horas de laser, que resumia-se a uma sessão de leitura de um cordel, comprado na feira de Custódia, religiosamente todas as segundas-feiras. O cordel, na época era conhecido por “Romance”, ou “Folheto”, e era o maior meio de comunicação dos sertões de então. Lembro que cheguei a participar de algumas dessas sessões, quando ouvi “O Pavão Misterioso” ou o folheto “chegada de Lampião no Inferno.”

Portador de um caráter extremamente sério, certa vez meu avô vendeu algumas reses e recebeu uma boa bolada de dinheiro. Numa segunda feira, ia passando em frente à mercearia de um senhor que era sincero até demais – chegava a ser grosseiro com suas afirmativas, e ouviu deste senhor que “os cabra de Cacimba Nova é tudo velhaco” (caloteiros). Meu avô não teve dúvidas: entrou na mercearia e despejou todo o dinheiro que trazia em cima do balcão da mercearia e ficou olhando o comerciante, que não entendendo nada perguntou:

- “ Pra que é essa dinheirama todo, Firmino?”

Ao que meu avô, olhando fixamente seu interlocutor falou alto e em bom tom para que todos os presentes ouvissem:

- “Esse dinheiro é para pagar todas as contas que os caboclos de Cacimba Nova lhe devem!”.

Atônito o comerciante gaguejou:

“- Eu não tenho nenhuma conta de gente da Cacimba Nova não”.

Ao que meu avô encerrou a conversa apenas dizendo:

- “Pelo que ouvi, Cacimba Nova não tem velhaco, agora, mentiroso a “Rua” tem. (A Rua era como se chamava a cidade).

Todas as segundas-feiras, Firmino envergava seu paletó de mescla “Alvorada, impecavelmente engomado por minha avó Maria _ Maria Benvinda da Conceição, e ia a cidade em busca do básico para a sobrevivência da família: Gás, como chamavam o querozene Jacaré, vendido em litros escuros, ou em latas. Quando o dinheiro dava, era comprado em latas de vinte litros. Além do querozende, a rapadura, o café, o açúcar e o sal formavam o menu indispensável para a vida nos sertões, cujas dificuldades faziam atiçar a criatividade da população para sua sobrevivência. Fósforo, por exemplo era dispensável: usava-se uma raiz de baraúna para pernoitar queimando, e de manhazinha era só soprar a mesmas para reacender o fogo. Para acender o cigarro, tinha o tabaqueiro, antecedente do isqueiro, que era uma pequena parte do chifre de um boi, devidamente polido, recheado de algodão, com uma tampa feita de um pedaço de cabaça, e um acessório chamado fuzil, que era um pedaço de metal. Para acender o taqueiro, era só deslizar fortemente o fuzil em um pedaço de pedra próximo ao algodão que as faíscas produziam o fogo no algodão.

Até mesmo calçados eram confeccionados com material produzido na própria fazenda. Lembro bem de um tipo de sandália, idêntica as famosas sandálias japonesas. Chamavam de Lep-Lep, pelo barulho que ela produzia quando o usuário andava, enquanto os mais irreverentes a denominavam de “salga-bunda”, devido a mesma jogar jatos de areia no traseiro do usuário quando este andava, semelhante ao ato de salgar carnes, quando eram jogados jatos de sal nas carnes a serem salgadas.

Sua fabricação era bastante simples: o usuário colocava os pés sobre uma lâmina de sola de couro de boi, e era desenhado o cotorno dos pés com carvão. Em seguida era feita o corte sobre esses riscos e feito a abertura de três buracos em cada pé da sandália: um na frente, à altura do dedão do pé e do dedo médio. Em seguida eram inseridas tiras de couro de bode nesses orifícios, e amarradas suas extremidades. Estava pronta a “Lep-Lep”, ou salga bunda. 

Além disso, itens considerados indispensáveis na feira, tinha a alegria da meninada nos dias feira: o pão doce, a cocada de batata de umbu, e raramente as cocadas de coco. Tudo distribuído assim que o Vovô chegava da feira.

Já doente, Firmino foi para a cidade, em busca de tratamento, na casa de um seu filho, o Padrinho Zé. Depois de alguns dias, devido a ausência de um tratamento adequado – naquele tempo não havia hospital nem médicos em Custódia, o tratamento se resumia a ingestão de medicamentos receitados por farmacêuticos leigos – que muito contribuíram para amenizar o sofrimento dos doentes, encontrei meu avô inerte, em uma rede.

Morreu com cerca de sessenta e cinco anos, com a aparência de um ancião de oitenta, dada as condições de vida da época.

Texto Exclusivo do Blog Custódia Terra Querida.

2 comentários:

  1. Zé Melo.
    Seu avô, morreu sem saber que inventara as Sandálias Havaianas.
    Pelo que o blog já guarda, este seu acervo precisa ser publicado.Vç é parte da história viva da nossa cidade, das nossas curiosidades e tradições. Não desperdice tanta riqueza de detalhes.
    Fernando Florencio
    Ilheus\Ba

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  2. Gosto muito de ler às histórias de Zé Melo é muito rica em detalhes parece que também vivi estes momentos!
    Você José Melo é uma enciclopédia viva!
    Nunca pare de contar esses casos!
    É muito bom lembrar às nossas origens.
    Quem não têm passado !
    Não têm presente muito menos futuro!
    Fica meu abraço de uma eterna saudosista.

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