por José Soares de Melo
Na década de cinquenta – quando comecei a ter entendimento da vida, conheci um pouco da história de meus ancestrais. Cheguei a morar naquela que hoje seria um verdadeiro monumento à história, a Casa de Pedra, moradia construída por um degredado português, segundo ouvi dos mais velhos. Era uma construção rústica, composta de uma vasta sala, um vão que servia de cozinha e sala de jantar, e dois quartos. Suas paredes mediam cerca de cinquenta centímetros de espessura, todas feitas de pedras cuidadosamente arrumadas, sem a utilização de argamassa. Hoje as águas do Açude Marrecas encobrem as ruínas do que foi a “Casa de Pedra”.
Nessa casa foram criados o meus avô, Firmino Vieira de Melo e seus irmãos, cujos nomes não conseguir guardar, apenas o de um deles, Miguel. Meu avô era conhecido como “Firmino da Casa de Pedra”, um pequeno fazendeiro que liderava toda sua vasta família e até mesmo vizinhos na região de Cacimba Nova.
Pai de Antônio Firmino – meu pai, de José Firmino, Wlisses Firmino, Gregório Firmino e Josué Firmino, além das Filhas Januária e Noeme.
Lembro claramente da figura de meu avô, tanto no casarão que ele construiu às margens do Riacho Marrecas, quanto nas suas idas todas as segundas - feiras à cidade, para “fazer a feira”.
A casa da Fazenda era enorme, não pela quantidade de cômodos, mas pelo tamanho deles. A sala de visita era um enorme salão, com cerca de dez janelas. As paredes da casa eram construídas de enormes tijolos, e o seu piso era feito de um ladrilho brilhante, fabricado na Olaria do seu Sogro, Batistinha quem eu chamava de Padrinho Batista.
Meu avô tinha todas as característica do caboclo sertanejo: forte, atarracado, pele curtida pelo sol abrasador do sertão. Rígido, exigia a presença de todos os filhos (solteiros), em todas as refeições, nas novenas celebradas no casarão, e até nas horas de laser, que resumia-se a uma sessão de leitura de um cordel, comprado na feira de Custódia, religiosamente todas as segundas-feiras. O cordel, na época era conhecido por “Romance”, ou “Folheto”, e era o maior meio de comunicação dos sertões de então. Lembro que cheguei a participar de algumas dessas sessões, quando ouvi “O Pavão Misterioso” ou o folheto “chegada de Lampião no Inferno.”
Portador de um caráter extremamente sério, certa vez meu avô vendeu algumas reses e recebeu uma boa bolada de dinheiro. Numa segunda feira, ia passando em frente à mercearia de um senhor que era sincero até demais – chegava a ser grosseiro com suas afirmativas, e ouviu deste senhor que “os cabra de Cacimba Nova é tudo velhaco” (caloteiros). Meu avô não teve dúvidas: entrou na mercearia e despejou todo o dinheiro que trazia em cima do balcão da mercearia e ficou olhando o comerciante, que não entendendo nada perguntou:
- “ Pra que é essa dinheirama todo, Firmino?”
Ao que meu avô, olhando fixamente seu interlocutor falou alto e em bom tom para que todos os presentes ouvissem:
- “Esse dinheiro é para pagar todas as contas que os caboclos de Cacimba Nova lhe devem!”.
Atônito o comerciante gaguejou:
“- Eu não tenho nenhuma conta de gente da Cacimba Nova não”.
Ao que meu avô encerrou a conversa apenas dizendo:
- “Pelo que ouvi, Cacimba Nova não tem velhaco, agora, mentiroso a “Rua” tem. (A Rua era como se chamava a cidade).
Todas as segundas-feiras, Firmino envergava seu paletó de mescla “Alvorada, impecavelmente engomado por minha avó Maria _ Maria Benvinda da Conceição, e ia a cidade em busca do básico para a sobrevivência da família: Gás, como chamavam o querozene Jacaré, vendido em litros escuros, ou em latas. Quando o dinheiro dava, era comprado em latas de vinte litros. Além do querozende, a rapadura, o café, o açúcar e o sal formavam o menu indispensável para a vida nos sertões, cujas dificuldades faziam atiçar a criatividade da população para sua sobrevivência. Fósforo, por exemplo era dispensável: usava-se uma raiz de baraúna para pernoitar queimando, e de manhazinha era só soprar a mesmas para reacender o fogo. Para acender o cigarro, tinha o tabaqueiro, antecedente do isqueiro, que era uma pequena parte do chifre de um boi, devidamente polido, recheado de algodão, com uma tampa feita de um pedaço de cabaça, e um acessório chamado fuzil, que era um pedaço de metal. Para acender o taqueiro, era só deslizar fortemente o fuzil em um pedaço de pedra próximo ao algodão que as faíscas produziam o fogo no algodão.
Até mesmo calçados eram confeccionados com material produzido na própria fazenda. Lembro bem de um tipo de sandália, idêntica as famosas sandálias japonesas. Chamavam de Lep-Lep, pelo barulho que ela produzia quando o usuário andava, enquanto os mais irreverentes a denominavam de “salga-bunda”, devido a mesma jogar jatos de areia no traseiro do usuário quando este andava, semelhante ao ato de salgar carnes, quando eram jogados jatos de sal nas carnes a serem salgadas.
Sua fabricação era bastante simples: o usuário colocava os pés sobre uma lâmina de sola de couro de boi, e era desenhado o cotorno dos pés com carvão. Em seguida era feita o corte sobre esses riscos e feito a abertura de três buracos em cada pé da sandália: um na frente, à altura do dedão do pé e do dedo médio. Em seguida eram inseridas tiras de couro de bode nesses orifícios, e amarradas suas extremidades. Estava pronta a “Lep-Lep”, ou salga bunda.
Além disso, itens considerados indispensáveis na feira, tinha a alegria da meninada nos dias feira: o pão doce, a cocada de batata de umbu, e raramente as cocadas de coco. Tudo distribuído assim que o Vovô chegava da feira.
Já doente, Firmino foi para a cidade, em busca de tratamento, na casa de um seu filho, o Padrinho Zé. Depois de alguns dias, devido a ausência de um tratamento adequado – naquele tempo não havia hospital nem médicos em Custódia, o tratamento se resumia a ingestão de medicamentos receitados por farmacêuticos leigos – que muito contribuíram para amenizar o sofrimento dos doentes, encontrei meu avô inerte, em uma rede.
Morreu com cerca de sessenta e cinco anos, com a aparência de um ancião de oitenta, dada as condições de vida da época.
Texto Exclusivo do Blog Custódia Terra Querida.
Zé Melo.
ResponderExcluirSeu avô, morreu sem saber que inventara as Sandálias Havaianas.
Pelo que o blog já guarda, este seu acervo precisa ser publicado.Vç é parte da história viva da nossa cidade, das nossas curiosidades e tradições. Não desperdice tanta riqueza de detalhes.
Fernando Florencio
Ilheus\Ba
Gosto muito de ler às histórias de Zé Melo é muito rica em detalhes parece que também vivi estes momentos!
ResponderExcluirVocê José Melo é uma enciclopédia viva!
Nunca pare de contar esses casos!
É muito bom lembrar às nossas origens.
Quem não têm passado !
Não têm presente muito menos futuro!
Fica meu abraço de uma eterna saudosista.