A rede das mulheres esquecidas
Escrevendo cartas, Maria Vanete Almeida criou, a partir do sertão de Pernambuco, um grupo que reúne milhares de trabalhadoras rurais da América Latina e do Caribe
Por Época Negócios
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A pernambucana Maria Vanete Almeida, de 65 anos, tem um talento especial para reunir mulheres em torno de uma causa. Fez isso pela primeira vez nos anos 80, como assessora da Federação de Trabalhadores de Pernambuco. Naquele tempo, Vanete - que trabalhou a maior parte de sua vida vendendo bordados ou como secretária numa escola em uma pequena comunidade próxima a Serra Talhada, a 400 quilômetros de Recife - ficava incomodada com a ausência de trabalhadoras na federação. Para reverter esse quadro, resolveu visitá-las em suas casas, numa época em que essas mulheres mal atravessavam o espaço da cozinha. Levava informação, música ou uma história para contar. As trabalhadoras, por sua vez, falavam de suas rotinas e problemas.
Como as reuniões atraíam apenas duas ou três mulheres, Vanete logo encontrou um meio de incentivá-las. Enquanto percorria a pé comunidades rurais da região, usava sua participação como locutora do programa de rádio A Voz do Sertão para divulgar as visitas. "Eu falava o nome das mulheres na rádio e informava que a reunião tinha sido um enorme sucesso", afirma Vanete.
MOBILIZADORA: Vanete em visita à África, em 2007: a fundadora da Rede LAC promove a troca de experiências com trabalhadoras rurais de outros países.
Na década seguinte, ela criou uma rede ainda maior, que ultrapassou as fronteiras do país. Em 1990, quando participava de um encontro entre empresárias, profissionais liberais e lideranças sociais feministas na Argentina, Vanete estranhou o silêncio das mulheres rurais no debate que reunia 3 mil pessoas. Saiu pelos corredores e pelo restaurante do evento pregando cartazes que diziam: "Mulheres rurais e quem trabalha com mulheres rurais: vamos nos reunir", com uma proposta de local para o encontro. Timidamente, foram aparecendo trabalhadoras rurais da Bolívia, do Chile, de Honduras, da Nicarágua. Num lugar improvisado, sentadas em círculo no chão, elas começaram a descrever a realidade da mulher e do trabalho rural em seus países. Mesmo diante do esforço para compreender as diferenças de idioma e sotaque, concordaram em buscar um sonho: iniciar uma rede feminina de troca de experiências e informações que abrangesse todo o continente.
Apesar dos avanços na comunicação, as mulheres da Rede LAC convivem com os desafios de fazer suas mensagens atravessar as enormes distâncias geográficas que as separam e, principalmente, de dar visibilidade a uma temática ainda invisível nas agendas governamentais e no investimento social das empresas. Em 18 anos de trabalho, colecionam importantes conquistas. No Peru, um grupo de participantes organizou, em Tarapoto, a venda de vinhos, doces, geléias e pães que produziam. O sucesso da empreitada estimulou novos grupos femininos a fazer o mesmo em Bellavista, Cacatachi, Juanjui, Saposoa, Cuñumbuqui e San Antonio. Hoje, o que produzem representa a principal renda das mulheres nessa região do Peru. Experiências como essas também aconteceram na Argentina, no Equador, no Uruguai e na Bolívia. Nesses países, as trabalhadoras não somente conquistaram o direito de receber, pela colheita, o mesmo salário pago aos homens como também conseguiram organizar diversas atividades para ter outra fonte de renda.
Há casos em que a invisibilidade que sempre marcou as profissionais do campo cedeu lugar a trajetórias públicas. No Equador, Luz Maclovia Haro Guanga disputou uma vaga para a Assembléia Nacional Constituinte e, atualmente, integra um grupo parlamentar que elabora propostas sobre a visão de gênero na nova Constituição equatoriana. Na Bolívia, Silvia Lazarte Flores, uma indígena de 44 anos, é presidente da Assembléia Constituinte. Em diversos momentos, a Rede LAC também ajuda a romper barreiras em temas delicados. "Eu tinha medo de falar do meu povo, os Shipibos", diz Hilda Amasifuén, uma peruana de 41 anos. "Convivemos com muita violência familiar, somos discriminadas e reprimidas. Mas percebi que isso acontece em vários países." O contato com outras mulheres ajudou Hilda a superar sua timidez. Como coordenadora da Organização Regional de Desenvolvimento de Mulheres Indígenas, no Peru, ela comanda um programa de rádio em que tenta despertar a autovalorização das indígenas.
"No início, essas mulheres eram quase mudas, mal diziam o próprio nome", diz Vanete. "A única referência que tinham eram suas comunidades. Hoje, conhecem o continente." No Brasil, a articulação da Rede LAC ajudou a dar um caráter internacional à Marcha das Margaridas, o maior evento de mulheres rurais do país. Em 2003, a mobilização - que levou cerca de 30 mil mulheres do campo a marcharem em Brasília por direitos trabalhistas, contra a violência e pela segurança alimentar - teve pela primeira vez a participação de lideranças rurais do México, da Argentina e do Uruguai. Em 2007, a presença de mulheres estrangeiras praticamente dobrou, ampliando a visibilidade e repercussão da marcha no resto do continente.
Em maio deste ano, Vanete e suas colegas da Rede LAC comemoraram mais uma conquista. Em parceria com a Fundação Avina e o Museu da Pessoa, elas lançaram o livro Uma História muito Linda - Perpetuando a Rede LAC. A publicação, editada em espanhol e português, traz o relato de 22 lideranças da Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, Nicarágua, Peru e Uruguai. Algumas das entrevistas que compõem o livro foram conduzidas pelas próprias mulheres rurais. "Eu nunca tinha contado essa história nem dentro da minha família", diz Verônica Andréa Gómez Prestes, do Uruguai. Assim como a peruana Hilda, Verônica pisou pela primeira vez no Brasil somente para participar da noite de autógrafos do livro. Depois da festa, as duas voltaram para casa. Vanete seguiu para a Itália e já tinha passagem marcada para o Uruguai. "Preciso buscar recursos para realizar mais um encontro", disse. Antes de iniciar cada viagem, Vanete precisa percorrer dez horas de ônibus entre sua casa, em Serra Talhada, e o aeroporto internacional de Recife. Uma rotina que faz questão de manter. "Não posso perder o contato com a minha casa", diz. "É pelo campo que me conecto com o resto do mundo."
Vanete voltou ao Brasil com depoimentos gravados em fitas cassete, alguns documentos e anotações de histórias de vida. Com a ajuda de amigas que conheciam o idioma espanhol - ela, que estudou até a quinta série, ainda não havia aprendido a língua - conseguiu produzir a ata daquela inesperada reunião na Argentina. Fez cópias usando mimeógrafo e enviou, por correio, para cada colega em seu país. Para sua surpresa, todas responderam. Receber uma carta internacional era algo inédito na realidade daquelas mulheres. A partir da troca de correspondência, elas criaram a Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe, ou Rede LAC.
Hoje a Rede LAC é uma organização que representa 25 mil trabalhadoras de 23 países. São mulheres que, sem ter acesso a fax, telefone celular ou correio eletrônico, decidiram se unir para trocar experiências e estimular a capacidade de engajamento e a conquista dos direitos das trabalhadoras rurais em suas regiões. Com uma estrutura de comunicação frágil e poucos recursos, elas já fizeram dois grandes encontros internacionais. Trouxeram 230 mulheres ao Brasil e levaram outras 260 ao México. O próximo destino será o Equador, onde mais de 400 são esperadas. "A rede é uma poderosa plataforma internacional de escuta, articulação e amplificação das vozes das mulheres rurais", diz Neylar Lins, representante da Fundação Avina para o Nordeste do Brasil. Graças ao seu trabalho, Vanete integrou o 1000 Mulheres pela Paz ao Redor do Mundo, uma indicação coletiva ao prêmio Nobel da Paz de 2005. Foi indicada com outras 51 brasileiras - entre elas Zilda Arns, da Pastoral da Criança, a atriz Zezé Motta e a escritora Ana Maria Machado.
Nos primeiros anos da rede, Vanete usava emprestado o único fax de sua cidade, na loja de um revendedor de móveis, e, quando tinha alguma urgência, o telefone do dono da farmácia. Atualmente a Rede LAC tem uma secretaria própria, em Recife, que organiza as atividades com a ajuda de mais duas pessoas. Existe também uma coordenação internacional, da qual fazem parte membros da Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Peru e Uruguai. O apoio financeiro vem de organizações como Avina, Ação Mundo Solidário, Action Aid, The Global Fund for Women e Coordenadoria Ecumênica de Serviço. O principal recurso, contudo, sai do próprio bolso das participantes, que custeiam boa parte dos deslocamentos pelo continente. "Quando conseguimos apoio para uma passagem internacional, isso significa metade do caminho", diz Vanete. "O trecho entre a casa e o aeroporto mais próximo é, muitas vezes, a parte mais complicada para elas percorrerem." Muitas dessas mulheres jamais tiveram passaporte, roupa apropriada ou sequer uma mala para viajar.
Hoje a Rede LAC é uma organização que representa 25 mil trabalhadoras de 23 países. São mulheres que, sem ter acesso a fax, telefone celular ou correio eletrônico, decidiram se unir para trocar experiências e estimular a capacidade de engajamento e a conquista dos direitos das trabalhadoras rurais em suas regiões. Com uma estrutura de comunicação frágil e poucos recursos, elas já fizeram dois grandes encontros internacionais. Trouxeram 230 mulheres ao Brasil e levaram outras 260 ao México. O próximo destino será o Equador, onde mais de 400 são esperadas. "A rede é uma poderosa plataforma internacional de escuta, articulação e amplificação das vozes das mulheres rurais", diz Neylar Lins, representante da Fundação Avina para o Nordeste do Brasil. Graças ao seu trabalho, Vanete integrou o 1000 Mulheres pela Paz ao Redor do Mundo, uma indicação coletiva ao prêmio Nobel da Paz de 2005. Foi indicada com outras 51 brasileiras - entre elas Zilda Arns, da Pastoral da Criança, a atriz Zezé Motta e a escritora Ana Maria Machado.
Nos primeiros anos da rede, Vanete usava emprestado o único fax de sua cidade, na loja de um revendedor de móveis, e, quando tinha alguma urgência, o telefone do dono da farmácia. Atualmente a Rede LAC tem uma secretaria própria, em Recife, que organiza as atividades com a ajuda de mais duas pessoas. Existe também uma coordenação internacional, da qual fazem parte membros da Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Peru e Uruguai. O apoio financeiro vem de organizações como Avina, Ação Mundo Solidário, Action Aid, The Global Fund for Women e Coordenadoria Ecumênica de Serviço. O principal recurso, contudo, sai do próprio bolso das participantes, que custeiam boa parte dos deslocamentos pelo continente. "Quando conseguimos apoio para uma passagem internacional, isso significa metade do caminho", diz Vanete. "O trecho entre a casa e o aeroporto mais próximo é, muitas vezes, a parte mais complicada para elas percorrerem." Muitas dessas mulheres jamais tiveram passaporte, roupa apropriada ou sequer uma mala para viajar.
VISIBILIDADE
Trabalhar com base na diversidade cultural e histórica de cada país é uma rotina árdua até para o mais experiente executivo de uma multinacional. Com as mulheres da Rede LAC não foi diferente. Na primeira reunião, que aconteceu em 1996, em Fortaleza, o estranhamento não demorou a aflorar. Já no início do encontro elas se olhavam desconfiadas. O que provaria que todas ali - negras, indígenas, caboclas, brancas ou mestiças, com diferentes costumes, dialetos, roupas e tradições religiosas - eram legítimas trabalhadoras rurais e campesinas? "Foi quando um grupo sugeriu mostrar uma parte do corpo: as mãos. Todas calejadas e com marcas da vida no campo", diz Vanete. A partir daí, os vínculos de confiança e respeito - ingredientes indispensáveis para animar qualquer rede colaborativa - não se romperam mais.Apesar dos avanços na comunicação, as mulheres da Rede LAC convivem com os desafios de fazer suas mensagens atravessar as enormes distâncias geográficas que as separam e, principalmente, de dar visibilidade a uma temática ainda invisível nas agendas governamentais e no investimento social das empresas. Em 18 anos de trabalho, colecionam importantes conquistas. No Peru, um grupo de participantes organizou, em Tarapoto, a venda de vinhos, doces, geléias e pães que produziam. O sucesso da empreitada estimulou novos grupos femininos a fazer o mesmo em Bellavista, Cacatachi, Juanjui, Saposoa, Cuñumbuqui e San Antonio. Hoje, o que produzem representa a principal renda das mulheres nessa região do Peru. Experiências como essas também aconteceram na Argentina, no Equador, no Uruguai e na Bolívia. Nesses países, as trabalhadoras não somente conquistaram o direito de receber, pela colheita, o mesmo salário pago aos homens como também conseguiram organizar diversas atividades para ter outra fonte de renda.
Há casos em que a invisibilidade que sempre marcou as profissionais do campo cedeu lugar a trajetórias públicas. No Equador, Luz Maclovia Haro Guanga disputou uma vaga para a Assembléia Nacional Constituinte e, atualmente, integra um grupo parlamentar que elabora propostas sobre a visão de gênero na nova Constituição equatoriana. Na Bolívia, Silvia Lazarte Flores, uma indígena de 44 anos, é presidente da Assembléia Constituinte. Em diversos momentos, a Rede LAC também ajuda a romper barreiras em temas delicados. "Eu tinha medo de falar do meu povo, os Shipibos", diz Hilda Amasifuén, uma peruana de 41 anos. "Convivemos com muita violência familiar, somos discriminadas e reprimidas. Mas percebi que isso acontece em vários países." O contato com outras mulheres ajudou Hilda a superar sua timidez. Como coordenadora da Organização Regional de Desenvolvimento de Mulheres Indígenas, no Peru, ela comanda um programa de rádio em que tenta despertar a autovalorização das indígenas.
"No início, essas mulheres eram quase mudas, mal diziam o próprio nome", diz Vanete. "A única referência que tinham eram suas comunidades. Hoje, conhecem o continente." No Brasil, a articulação da Rede LAC ajudou a dar um caráter internacional à Marcha das Margaridas, o maior evento de mulheres rurais do país. Em 2003, a mobilização - que levou cerca de 30 mil mulheres do campo a marcharem em Brasília por direitos trabalhistas, contra a violência e pela segurança alimentar - teve pela primeira vez a participação de lideranças rurais do México, da Argentina e do Uruguai. Em 2007, a presença de mulheres estrangeiras praticamente dobrou, ampliando a visibilidade e repercussão da marcha no resto do continente.
Em maio deste ano, Vanete e suas colegas da Rede LAC comemoraram mais uma conquista. Em parceria com a Fundação Avina e o Museu da Pessoa, elas lançaram o livro Uma História muito Linda - Perpetuando a Rede LAC. A publicação, editada em espanhol e português, traz o relato de 22 lideranças da Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, Nicarágua, Peru e Uruguai. Algumas das entrevistas que compõem o livro foram conduzidas pelas próprias mulheres rurais. "Eu nunca tinha contado essa história nem dentro da minha família", diz Verônica Andréa Gómez Prestes, do Uruguai. Assim como a peruana Hilda, Verônica pisou pela primeira vez no Brasil somente para participar da noite de autógrafos do livro. Depois da festa, as duas voltaram para casa. Vanete seguiu para a Itália e já tinha passagem marcada para o Uruguai. "Preciso buscar recursos para realizar mais um encontro", disse. Antes de iniciar cada viagem, Vanete precisa percorrer dez horas de ônibus entre sua casa, em Serra Talhada, e o aeroporto internacional de Recife. Uma rotina que faz questão de manter. "Não posso perder o contato com a minha casa", diz. "É pelo campo que me conecto com o resto do mundo."
QUEM É VANETE ALMEIDA
IDADE>>> 65 anos Nasceu em Custódia, Pernambuco
VIVE EM>>> Santa Cruz da Baixa Verde, no mesmo estado
FAMÍLIA>>> Tem dois filhos adotados, Leonardo e Adenilda, e um neto, João Mateus
FORMAÇÃO>>> Concluiu a 5ª série
PROJETO>>> A Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe, criada por ela em 1990, hoje conta com 25 mil integrantes de 23 países
RECONHECIMENTO>>>Vanete integrou o 1000 Mulheres pela Paz ao Redor do Mundo, indicação coletiva ao prêmio Nobel da Paz de 2005
POR QUE ESCOLHEU TRABALHAR COM MULHERES RURAIS>>> "Elas são invisíveis, isoladas e dificilmente contempladas por políticas públicas".
LINK MATÉRIA: ÉPOCA NEGÓCIOS
IDADE>>> 65 anos Nasceu em Custódia, Pernambuco
VIVE EM>>> Santa Cruz da Baixa Verde, no mesmo estado
FAMÍLIA>>> Tem dois filhos adotados, Leonardo e Adenilda, e um neto, João Mateus
FORMAÇÃO>>> Concluiu a 5ª série
PROJETO>>> A Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe, criada por ela em 1990, hoje conta com 25 mil integrantes de 23 países
RECONHECIMENTO>>>Vanete integrou o 1000 Mulheres pela Paz ao Redor do Mundo, indicação coletiva ao prêmio Nobel da Paz de 2005
POR QUE ESCOLHEU TRABALHAR COM MULHERES RURAIS>>> "Elas são invisíveis, isoladas e dificilmente contempladas por políticas públicas".
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