09 dezembro, 2023

Morada Jardim da Saudade - (Jorge Remígio)

 
Zé Burgos, D. Corina e Noêmia Burgos


Naquela calorenta terça-feira do dia 29 de janeiro de 1974, Zé Burgos estava meio que inquieto, mas nada excessivo que fosse observado como algo fora do seu jeito de ser. Porém, o diferencial era que alternava com momentos de pura introspecção. Curioso, justamente porque era mais comum vê-lo falando alguma coisa disparadamente, e quase sempre provocando risos. 

 Após o falecimento do seu sogro Joaquim Pereira da Silva, no ano de 1972, assumiu definitivamente o controle da farmácia da família, juntamente com a sua sogra, dona Corina Marques Pereira. Era um farmacêutico prático muito competente, e uma pessoa de um carisma inquestionável. Ele foi, para mim, a primeira pessoa preocupada com o social que conheci. Presenciei várias cenas dele na minha infância, adolescência e até na fase adulta, que atestam essa minha afirmação. 




Às 11:50 horas, como de costume, saiu da farmácia, era hora de ir até a sua residência almoçar. Porém, naquele dia seguiu o sentido oposto, entrando na residência de seu Chiquinho de Panfila, na Rua Padre Leão, dirigindo-se até ao bar que ficava no final da casa, com frente para a Rua Nemésio Rodrigues. Às 14:30 horas, horário que sempre retornava à farmácia após o almoço, nada de Zé Burgos. Meia hora depois, dona Corina já estava um pouco preocupada, pois ele sempre avisava quando ia atrasar. Nesse momento, um rapazinho entra na farmácia e informa para dona Corina que Zé Burgos estava bebendo no bar de seu Chiquinho e que comentava muito sobre o pai, lembrando para todos que estavam presentes, que naquele dia era aniversário da sua morte. “Dona Corina, ele disse que vai para Sítio dos Nunes onde o pai está enterrado, já chamou até Zé do Bode para levá-lo, e a Rural está na frente do bar”. Dona Corina pediu, por obséquio, que a pessoa fosse até a casa da sua filha Noêmia, avisar do que estava se passando. Dona Noêmia, ao tomar conhecimento, além da preocupação, pensava em como interferir na decisão do marido. Quando Zé Burgos botava uma coisa na cabeça, todos sabiam como era difícil demovê-lo da ideia. Lembrou dos filhos de Claudionor, primo do seu esposo, e sabia que Zé Burgos, tinha uma grande atenção a eles, era impressionante. Foi de imediato à casa de Claudionor que ficava muito próximo a sua e, quando chegou, avistou minha mãe na sala e falou ofegante: “comadre, Zé Burgos está bebendo no bar de Chiquinho, já tomou todas, e está dizendo que vai para Sítio dos Nunes, quer visitar o túmulo do pai, diz que hoje é aniversário de sua morte e tem que visitar de todo jeito o local onde ele está sepultado. Comadre, o pai de Zé Burgos morreu em 1924, ele não tinha nem dois anos de idade”. 



Sérgio com 12 anos com a mãe Osanira



Hoje

Naquele momento, dos filhos de Claudionor, só se encontrava Sérgio, que era o mais novo, com 12 anos. Foi pedido a Sérgio que se dirigisse correndo até o bar, pois poderia nem mais encontrar Zé Burgos no local. Sérgio saiu em disparada, e enquanto corria com todas as suas forças, pensava em como fazer Zé Burgos desistir daquela viagem improvisada.  

Claro que não deu tempo para elaborar nada em seu cérebro, mesmo diminuindo intensamente a velocidade de sua correria, ao avistar a rural ainda em frente ao bar. Quando adentrou no estabelecimento de seu Chiquinho, deparou-se com Zé Burgos em uma mesa cheia de garrafas vazias de cerveja, e Zé do Bode, sentado em uma mesa ao lado, só esperando, como se diz no jargão militar, a voz de comando. Zé Burgos ao avistar o primo, fala alto e sorridente “Serginho, você chegou em boa hora, Chiquinho, traz mais uma saideira e um guaraná prá Sérgio, vamos para Sítio dos Nunes e você vai comigo visitar o túmulo do meu pai.” Sérgio já sabia desse intento, porém, não estava em seus planos fazer essa viagem, muito menos para um cemitério. 

- E agora, fazer o quê? 

Calculou. Eram 15:30 horas, uma viagem para Sítio dos Nunes não leva mais do que meia hora, pois só são 20 KM, muito próximo. Com folga, às 16:00 horas chegaremos ao cemitério, e ainda retornaremos com a claridade da tarde, mesmo que as preces e meditações se estendam um pouco. Perfeito. Entraram finalmente na Rural e seguiram viagem na BR 232. Realmente, a viagem foi tranquila e Sérgio respirou aliviado quando avistou as primeiras casas. Porém, subitamente, Zé Burgos fez um pedido inesperado ao condutor. “Zé do Bode, antes de irmos até o cemitério, quero rever meu primo Zé Velho, ele tem um bar aqui pertinho na rua Dr. Santana Filho. É meu parente também, pois meu pai era Antônio Burgos de Santana.” Nesse momento Sérgio acendeu o alerta, tinha que recalcular todo o seu plano. Zé Burgos, ao entrar no bar, foi saudado calorosamente pelo primo Zé Velho e outros parentes que estavam ali. O anfitrião abriu logo uma cerveja e em seguida foi dizendo para Zé Burgos o grau de parentesco de alguns que se encontravam no local. 

Todos passaram a se confraternizar embalados pelas Brahmas que eram abertas seguidamente e em pequenos intervalos, um guaraná para Sérgio, que pouco tempo depois passou a recusar, alegando que o bucho não aguentava mais. Sim, a sua grande preocupação agora era com o falecimento do sol, e o horizonte quase opaco, já não mais refletia a luz. Sérgio constatou isso, pois a todo instante, impaciente, saia na calçada e olhava o sol descambando velozmente lá prás bandas de Serra Talhada. Ir no cemitério durante o dia, para ele, era até suportável, mas à noite? Passou a ter calafrios, medo, pânico mesmo, imaginando a morada dos mortos no escuro.





A noite chegou, agora não fazia mais diferença alguma os minutos e nem as horas, a realidade era a mesma, a escuridão. Até imaginou a possibilidade de Zé Burgos desistir da visita noturna, porém, foi um ledo engano, pois justamente nesse momento, Zé Burgos pediu para um dos primos comprar um maço de velas em uma bodega próxima. Morrendo de medo das almas, mas agora teria que encarar aquela empreitada, pois não podia interferir numa quase promessa do seu primo valoroso. Ao receber o pacote de velas, Zé Burgos o abriu de imediato e entregou uma vela para Zé do Bode e outra para Sérgio, pois queria que eles compartilhassem daquele momento de sentimento fúnebre. Foram feitas as despedidas de praxe, e, em seguida, entraram na rural com destino ao campo santo, o qual não ficava distante. Sérgio, com os batimentos cardíacos acelerados, começou a rezar baixinho, pois só um milagre impediria de transitar entre túmulos, cruzes de madeira e até alguma cova aberta. O medo estava explícito em seu semblante. A rural saiu lentamente na rua que dá acesso a BR 232, e em uma fração de minutos ouviu-se um barulho, alguma coisa havia caído no piso do veículo. Zé do Bode olhou à sua direita e viu o maço de velas no assoalho, e falou baixinho. “Sérgio, Zé Burgos dormiu” A rural já estava parada e a pista cruzando a frente. À direita de onde estavam, havia uma placa informativa.


“CEMITÉRIO MORADA JARDIM DA SAUDADE a 300 metros.” E agora? Zé do Bode olhou para Sérgio e não falou, mas os gestos e olhares substituíram qualquer palavra naquele momento conflitante, até porque temiam acordar Zé Burgos. Sérgio parecia despertar de um pesadelo, e com as duas mãos, olhando para Zé do Bode, gesticulava freneticamente na direção leste, à esquerda, para Custódia, “meu Deus, que alívio, minhas preces foram ouvidas” O retorno foi mais veloz, porém, a necessidade de se chegar logo, tornou-se angustiante. A rural parou em frente à casa número 55 da Rua 20 de Julho, e dona Noêmia encontrava-se à sua frente. Zé Burgos acordou do sono breve e Sérgio foi o primeiro a sair do carro. Ajudou seu primo a sair e dona Noêmia agradeceu a Sérgio pela companhia que fez a seu esposo. 
 

“Não foi nada, dona Noêmia, foi tudo tranquilo.” Enquanto se dirigia para sua casa na Rua Padre Leão 12, pensou: “será que Zé Burgos quando acordar amanhã, vai pensar que tudo isso foi um sonho? Ou também poderá imaginar que a corrida com Zé do Bode limitou-se do bar de seu Chiquinho para sua residência? A vida imita a literatura!" Entendeu? compreendeu?  

Zé Burgos faleceu no início da noite, do dia 25 de fevereiro de 1978, aos 55 anos e quatro meses.  

 
Obs. Estamos esperando uma foto de Zé do Bode, tão presente nesta crônica.  

Texto de Jorge Remígio 
Recife, 06 de dezembro de 2023 

18 comentários:

  1. Nós vamos lendo e relembrando de todos os cantos deste trajeto. Belo texto!

    ResponderExcluir
  2. Sem palavras meu cunhado Jorge Remígio! você e fodaaaaa...👍👍👍👏👏👏

    ResponderExcluir
  3. Mais uma excelente crônica. Parabéns, Jorge Remígio !

    ResponderExcluir
  4. Desse jeito, viu? Sofri....kkkk Medo da " gota, homi?"

    ResponderExcluir
  5. Cemitérios, hoje em dia é uma coisa comum, pois lá existem energia com luzes, abertos a qualquer horas. Antigamente, cemitérios eram à escuras, fechados, então quase ninguém visitavam a estas horas da noite. Silêncio imperava. ( Sérgio Murilo Remígio)

    ResponderExcluir
  6. Excelente texto Jorge parabéns

    ResponderExcluir
  7. Jorge no dia da morte de seu Zé Burgos, como eu chamava,já morava em Serra Talhada, mas passei à noite e fiquei até a hora do seu sepultamento. Era um grande homem e meu amigo pessoal.

    ResponderExcluir
  8. Meu primo querido, adorei a sua crônica. Muito bom saber o quanto o meu pai esteve presente na sua vida e o quanto você gostava e o admirava. Adoro as suas crônicas e o seu jeito de escrever. Avante com mais preciosidade como essa. Muito obrigada 🙏🥰

    ResponderExcluir
  9. Belo texto. Como sempre suas crônicas nos remetendo a nossa memória afetiva. Abraços!! Tatiana.

    ResponderExcluir
  10. Adoro suas crônicas meu querido primo Jorge.

    ResponderExcluir
  11. Seu Zé Burgos era super simpático e atencioso na Farmácia e c/mto carinho que cuidava da gente!!

    ResponderExcluir
  12. Exelente a crônica do amigo Jorge Remigio sobre a visita do Ze Burgos ao cemitério, parabéns amigo vc é preciso em sua narrativa.

    ResponderExcluir