Sob preconceito, sincretismo religioso originado no passado ajuda quilombolas a aliviar dores do mundo e a confiar no futuro às 6h da manhã, ela acorda e prostra-se diante da Bíblia. Abre as folhas amareladas e repete um hábito. Maria José de Barros lê, sem cansar, o mesmo salmo – o de nº 93. O texto fala da vida em comunidade, de paz, compreensão e respeito. Aos domingos, após a leitura do salmo, vai à missa. De lá, segue para a casa de mãe Neide. Faz oferendas aos orixás do Candomblé, considerados os espíritos da natureza e cultuados no Brasil desde as senzalas. Maria comemora o Natal dos católicos e, no dia da Consciência Negra, sobe à Serra da Barriga (União dos Palmares, Sertão de AL) para prestar homenagem ao líder da revolta antiescravista Zumbi dos Palmares. Com orgulho, enverga uma saia branca rodada e um turbante africanizado na cabeça. “Deus é um só”, lembra, no alto do “solo sagrado” de Palmares, em pleno 20 de novembro, horas após visitar a Lagoa dos Pretos. Com cheiro de história, linda, a lagoa é o lugar onde foi feita a celebração religiosa à memória de Zumbi no amanhecer daquele dia.
A religiosidade do negro quilombola reproduz a cultura deles. Engloba elementos do catolicismo e do candomblé. A grande parte é puramente católica, mas o auto- reconhecimento da situação política – fenômeno sociológico em processo de consolidação há 10 anos – vem promovendo uma aproximação com os práticas de origem afro. “Buscamos restabelecer nossos laços culturais”, explica Neide Martins, mãe de santo que fala de religião, movimentos artísticos e territórios quilombolas com a mesma desenvoltura. Neide, ao lado de pais e mães de santos de Alagoas, Pernambuco e Bahia entre outros estados, tenta vencer o preconceito que existe contra o cultos afro-brasileiros . No Ceará, Francisco Coelho (46 anos), conhecido em Horizonte (CE), como Francisco de Oxum, tem conseguido. Desde sua chegada na comunidade de Alto Alegre, há quatro anos, aumentou o número de praticantes da umbanda (que homenageia os espíritos dos índios e escravos). Coelho sabe que no Sertão a resistência é maior.
A Raiz – Preponderante, o catolicismo dos quilombolas do Sertão nordestino é visceral. Compreensível, dizem os estudiosos, porque faz parte de um processo de aceitação histórica. “Até hoje, há um preconceito muito grande. Meu filho mesmo, tem medo até hoje. E já é adulto”, diz Maria, sorrindo, como se aceitasse e respeitasse.
O catolicismo é visto por toda a parte nas comunidades quilombolas – nas pequenas igrejas, no escapulário que muitos carregam, nos santos expostos em lugar nobre da sala de estar. Religiosos adentram caatinga afora, em procissão, com uma imagem do Sagrado Coração de Jesus na mão, em um dia qualquer, como o que vimos em 18 de novembro, em Lagoa Grande, Custódia (PE).
As benzedeiras são inseridas nesse mundo e estão espalhadas nos recôncavos das casas modestas. Na comunidade quilombola de Gia, em Quixadá (Sertão de PE), onde vivem cerca de 200 famílias, cinco benzedeiras gozam da confiança popular. Parte da tradição, elas próprias vêm perdendo lugar para os novos evangélicos. Entranhadas na vida dos quilombolas, benquistas como parentes próximos e experientes no uso da medicina popular das plantas, elas suprem as necessidades de uma saúde deficiente e de uma debilitada rede de proteção social. Dona Santinha (de Lagoa Grande, PE) usa pinhão roxo para olho gordo, jatobá e umburama de cheiro para gripe. Outras, adotam a folha de mamoeiro e azeite para dor de cabeça. As rezadeiras oram e usam os ensinamentos das raízes para a cura – prática também adotada por africanos. Quando não dá certo, a fé, resistente como os negros que trouxeram a base desse sincretismo religioso, resolve.
Link original da matéria: Diário de Pernambuco
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