Preparando o caminho
No Recife, um braço da Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela reúne antigos e futuros peregrinos que se interessam pelo mítico percurso em direção à cidade espanhol.
“Você está se relacionando bem com o seu corpo?”, é a primeira pergunta que faz a anfitriã, a arquiteta Fátima Ananias, 57 anos. “Você precisa sentir os seus pés, pisar bem com o sapato, o tênis ou a bota. Ter essa consciência é fundamental”, ensina. É domingo e o sol já está prestes a se pôr. Próximo ao Parque Dona Lindu, no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife, um grupo se reúne uma vez por mês no sexto andar de um edifício residencial. A conversa vai bem mais longe: Santiago de Compostela, na região da Galícia, noroeste da Espanha. Onde chove muito no outono e no inverno. Por vezes, também na primavera. O céu nublado é o pano de fundo na maioria das fotografias tiradas pelos turistas que visitam o mais famoso município galego.
Neste domingo, o funcionário público Marcelo Burgos(filho de Noêmia Pereira Burgos e José Pereira Burgos), 58 anos, deve estar cruzando alguma cidade espanhola, pela via urbana, por uma trilha no meio da mata ou por um lamaçal provocado pelas chuvas do verão. Ele vive um tempo de mudança: está se aposentando. Viu na viagem a chance de uma autoanálise. “Minha esposa queria ir comigo pra passear, mas esse não é o foco. Expliquei a ela que é um objetivo particular”. Serão 30 dias na versão francesa do caminho, nos explicou Marcelo poucos dias antes de embarcar para Madri, de onde pegaria um trem até Pamplona e seguiria de táxi para Saint-Jean-Pied-de-Port, no sudoeste da França, onde tem início o caminho francês, a rota mais tradicional até Santiago. “Preciso encarar esse desafio”. O funcionário público entrou em contato com a Associação Amigos do Caminho de Santiago há um ano e meio. “O físico, preparei nas corridas que faço nos fins de semana. Mas a cabeça, só acalmei nos encontros que acontecem no apartamento de Fátima”.
Não existe uma regra para se percorrer o Caminho de Santiago. Mas associações, reunidas na Federação Espanhola de Associações de Amigos do Caminho de Santiago, dão dicas e conselhos para quem pretende fazer a viagem. O braço recifense se desenha nos encontros na Rua Setúbal. Antes de viajar, em 2001, Fátima já mantinha contato com integrantes das associações do Caminho de Santiago de Compostela no Brasil, com sedes oficiais no Rio de Janeiro e em São Paulo (reconhecidas pela Junta de Castilla y Leon e pela Junta de Galicia, vinculadas à Federação Espanhola de Associações). Depois que voltou, passou a interagir com mais regularidade com os Amigos do Caminho. Até que surgiu o convite para ser uma representante dos associados no Recife.
Em 2006, Fátima fez de sua casa um espaço para dar conselhos aos futuros peregrinos e trocar experiência com quem já percorreu pelo menos uma das 26 rotas oficiais listadas no portal online Mundi Camino. Assumiu, também, a responsabilidade de entregar aos viajantes que a procuram a credencial que a Catedral de Santiago de Compostela disponibiliza. “É como um passaporte que serve para ser carimbado nos albergues em que o peregrino dorme durante o trajeto. Se você completar os últimos 100 quilômetros a pé até Santiago, a credencial lhe dá direito a uma Compostela, espécie de certificado por ter concluído o trajeto”, explica. “O Caminho é mágico. É quando você vê que a utopia é possível, por mais paradoxal que isso seja. Gente do mundo todo, falando línguas diferentes, se entendendo”. Assim como Marcelo, a advogada partiu de Saint-Jean-Pied-de-Port, última cidade francesa na fronteira com a Espanha. Demorou 12 horas para atravessar os Pirineus e andou 33 dias até completar os quase 800 quilômetros do Caminho Francês. Como resultado, uma epifania. “Recuperei a fé no ser humano. Vivemos em um mundo cão, mas percebi que o homem ainda vale a pena”.
Link Matéria: Caderno Aurora
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