26 setembro, 2021

O vinte de Julho e a visão política de uma criança na primeira metade dos anos sessenta na cidade de Custódia. Autor Jorge Remígio

  

 
A meninada foi dormir mais cedo naquela noite escura de Julho. Já tínhamos consciência que o despertar seria muito mais cedo do que o de costume. Realmente, o dia ainda despontava os primeiros raios de luz, e o estampido estridente de bombas e foguetões a pipocar sucessivamente, acorda toda cidade, era a alvorada em dia de festa.

Pulo da cama numa rapidez felina, visto uma camisa e, ainda com os olhos remelentos, corro para abrir a porta de saída da minha casa.

Descalço, sim, não costumávamos usar calçados, salvo quando a ocasião exigia, e ouço o som dos instrumentos de sopro da banda de música, já descendo a Rua Manoel Borba em direção ao centro arrastando várias crianças das ruas do alto. Fiquei esperando a retreta em frente à minha casa que ficava ao lado da igreja, uma vez que ela já se aproximava. Me junto ao cordão da meninada e sigo o cortejo harmônico, encantado com os clarinetes, trompas, trombones, tuba, sax e a percussão. 

Ah! Ainda tinha os pratos. Percorremos as ruas centrais da cidade caminhando sempre ao lado dos amigos mais chegados. As pessoas iam abrindo as portas das suas casas e ficavam nas calçadas e janelas a observar e ouvir aqueles lindos dobrados executados por músicos profissionais. Aquilo era fantástico, muito mais ainda para a meninada travessa. Era o dia vinte de julho, dia que se comemorava o aniversário do Prefeito Ernesto Alves de Queiroz. Eu tenho poucas lembranças de quando ele foi eleito, em 1959, pela UDN em uma disputa eleitoral com o comerciante João Miro da Silva, lançado candidato pelo então presidente do PTB, José Gonçalves Florêncio.

O meu pai era udenista fervoroso, correlegionário e amigo do prefeito, então, falava para mim que Ernesto já tinha sido prefeito várias vezes e que nunca havia perdido uma eleição.

Estávamos em julho do ano de 1963, então, a campanha política eleitoral se aproximava, mas já sabíamos que a UDN, presidida pelo atual prefeito Ernesto Queiroz, iria lançar como candidato o grande comerciante Severino Pinheiro para disputar com José Florêncio a eleição de outubro daquele ano. As novas gerações custodienses não fazem o menor juízo de como a política era acirrada e violenta naquela época. Os adversários políticos eram intrigados e raramente uma pessoa que seguia uma corrente partidária, tinha amizade com quem apoiava o candidato contrário. Era um verdadeiro “apartheid”. Tudo era dividido. Existiam dois clubes na cidade, a sede do PTB, onde se fazia festas e outras atividades, o qual localizava-se onde hoje é a Câmara de Vereadores, e vizinho, colado mesmo, ficava o CLRC, que era frequentado por pessoas ligadas a UDN. Eu presenciei uma mocinha ser barrada na entrada desse clube. Um dos diretores disse. “Eu soube que você dançou no PTB, aqui você não entra”. 

Severino Pinheiro em um carnaval no CLRC.
Provavelmente em 1970.
 

As crianças reproduziam essas diferenças e se engajavam nas posições políticas dos pais. Digo porque lembrei de um fato curioso. Era frequente brincarmos no quintal da casa de Osminda, prima da minha mãe, então, todas as crianças que frequentavam aquele espaço lúdico, torciam pelo candidato da UDN, Severino Pinheiro, com exceção de um primo, meu xará. Fazíamos chantagem com ele, condicionando a entrada em certas brincadeiras, a dizer que estava com o nosso candidato.


“Vai, basta dizer que é Severino Pinheiro, só isso” Ele ficava calado, meio cabisbaixo, constrangido mesmo. E nós insistíamos, porém, nunca conseguimos o voto dele, era irredutível, inflexível neste aspecto. Em outra ocasião, estava na minha casa em uma manhã, então vi minha mãe entrar com um semblante diferente, assim, meio que perplexa, ela se dirigiu para uma pessoa na cozinha e falou: “Menina, eu ainda estou em choque. Vinha subindo a ladeira da Várzea agora, e me deparei com Zé Florêncio. Ele me cumprimentou e parecia até que eu era uma antiga amiga. Me chamou de comadre, e perguntou sorrindo se estava tudo bem, eu fiquei atônita, sem saber o que responder. Claudionor não pode nem sonhar, não pode saber disso de jeito nenhum”


Chico Elizeu em 1967 com 13 anos.


O cortejo se despedia da Praça Padre Leão com um número bastante significativo de meninos por todos os lados, e agora seguia para o coreto da praça que ficava em frente da casa do Prefeito para fazer o encerramento da retreta. As crianças começaram a se dispersar indo à maioria para as suas casas, restando quatro retardatários: eu, Chico Elizeu, e os irmãos Marcelo e Hiran Burgos, meus primos. Ficamos perambulando pela Praça Padre Leão e seguimos para o local onde o fogueteiro, Santo, havia executado o seu trabalho de acordar a cidade com todo aquele bombardeio. A fogueira usada por este ainda ardia, mesmo com poucas brasas acesas. Um menino que estava próximo, Francisco filho de Mané da Rebeca, falou para nós que tinha achado uma bomba esquecida pelo fogueteiro. Pensamos, vamos requisitá-la. Pedimos para ele aquele artefato belicoso, porém, nos foi negado. Chico por ser o maior, tomou a bomba do menino. Ela agora era nossa. Ficamos os quatro de cócoras ao redor da fogueira, e Chico iniciou a tarefa de desenrolar vagarosamente. Tirou uns cordões rústicos que a envolvia e ficou a pólvora sobre um papel muito grosso já desenrolado. E agora, o que fazer? Chico teve a ideia de derramar um pouco da pólvora solta no papel, diretamente sobre as brasas da fogueira quase morta. Para nossa surpresa nos deparamos com um espetáculo pirotécnico, pois, a pólvora transformou-se em um fogo de um azul intenso, lembrando um neon emergindo das brasas.

Ficamos boquiabertos com aquela beleza de cascata azulada. Incontinente, Chico falou: “Vou jogar a pólvora toda para subir um fogo muito maior” Ele não ponderou, já foi executando a tarefa, eu ainda tive a percepção relâmpago que aquilo não daria certo e gritei: NÃO! Meu grito foi abafado pela grande explosão a nossa frente, surgindo uma densa cortina de fumaça obscurecendo totalmente a nossa visão, e em seguida ouvimos os gritos de dor do amigo Chico. Uma cena que nunca sairá da minha mente, a fumaça esvaecendo lentamente, não mais embaraçando nossas vistas, e na sequência surge a mão do nosso amigo com os dedos dilacerados, que horror.

O zumbido nos ouvidos era ensurdecedor, Hiran gritava dizendo que estava mouco, Chico com os dedos pendurados, segurados por peles banhadas de sangue, sentindo uma dor dilacerante e eu fiquei meio que paralisado naquela cena de guerra, só reagindo quando Chico aos gritos falou: “foi Jorge que acendeu um fósforo e jogou na pólvora” Eu? Fiquei em pânico, comecei a chorar em total desespero, argumentando que era impossível, e ele insistia, me culpando por aquele fato horripilante.

As pessoas iam se aproximando curiosas em saber o ocorrido e nos seguia na direção da casa de seu Chiquinho de Elizeu. Chico foi levado imediatamente para o hospital na cidade de Sertânia e posteriormente se desculpou, me dizendo que ficou com medo de levar uma surra do pai pela
peraltice. Horas depois do ocorrido, percebi que fiquei com as duas pálpebras feridas. Poderia ter perdido a visão naquela brincadeira de menino travesso do interior nos anos sessenta.

A campanha política eleitoral foi acirrada, fui a alguns comícios com o meu pai e pela multidão
fervorosa, tinha certeza da vitória. Após as eleições de outubro de 1963 serem encerradas, os votos só começaram a ser contados na manhã do dia seguinte. As urnas ficaram guardadas e policiadas no fórum que ficava vizinho da minha casa, onde posteriormente foi a biblioteca municipal. Claro que não havia pesquisas eleitorais naquela época, portanto, as duas correntes partidárias tinham a certeza da vitória. Após quase dois dias de apuração, veio o inesperado. O meu candidato perdeu.

Foi a minha primeira desilusão. Que gosto amargo é a derrota. Todos meus amigos ficaram
incrédulos com aquele resultado, era realmente inacreditável para todos nós. Os anos seguintes foram bastante conturbados. Em 01 de abril de 1964 instalou-se no Brasil um regime de exceção, e na minha cidade os conflitos beligerantes se intensificaram, ocasionando várias mortes. Amigos e amigas ficaram órfãos de pai ainda criança, resultando em muita dor. O tempo encarregou-se de cicatrizar vagarosamente as feridas abertas, mas é evidente que as sequelas deixadas foram inevitáveis de serem totalmente esquecidas. O tempo mudou, a cidade cresceu, e a outrora propalada “CUSTÓDIA SANGRENTA”, desapareceu na poeira do tempo. Ficou a história.


Texto
Jorge Remígio
Recife - PE
Setembro/2021

 Apoio Cultural



7 comentários:

  1. Texto perfeito, retrata com perfeição aquela campanha eleitoral. Aliás, foi a primeira campanha de que participei: fiz uns versos que apoiavam a campanha de Severino Pinheiro e ironiza a os adversários. Não precisa dizer da decepção com a derrota. Mesmo criança, todos nós tínhamos "o lado" político, já naquela época. J.Melo

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  2. Precisei de um tempo pra me recompor da emoção de ler esse texto de Jorge Remígio. Ele é tocante, brilhante e até, de certa forma, dilacerante. Li sem pausar, porque não me permitiu sequer respirar a sequência viva e pungente desse relato, que resgata um tempo, um espaço e uma história fincados no coração de tanta gente. É um texto rico, que fala de alegria e de dor, da maravilha da liberdade de ser criança e da crueza de uma política dividindo as pessoas de forma radical, pra sufocar a natural pluralidade de pensamento, que exige o respeito à diversidade humana. Como o cenário que o texto traz mostra uma Custódia logo após minha saída de lá, ele guarda todos os contornos da cidade que deixei e onde vivi toda a minha infância/adolescência - e eu me encontro e me encanto no contexto que Jorge descreve com perfeição. Uma coisa me doeu mais: a discriminação de pessoas pelo viés político. Duas coisas me encantaram mais: a vontade que me deu de entrar no cordão da retreta, pra me encantar com a música, e a alegria de sentir que a divisão política, que separava as pessoas como inimigas, é passado há muito tempo. Um precioso presente, Jorge! Fico aguardando seu livro, que deve ser um urgente e irrecusável projeto seu.
    Laíse Rezende

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    1. Laíse, minha amiga. Sou belas palavras me deixa le e solto para pensar em um publicação futura. Tento ser um memorialista da nossa cidade. Muitas coisas importantes, informações valiosíssima vãos se perdendo com o tempo, se não houver um registro. Principalmente em Custódia. Existe esse pecado, o de relegar a sua história. As novas gerações tem o direito de conhecer o passado do seu torrão. A memória é a alma de um povo. Um abraço afetuoso.

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  3. Lia às notícias de Custódia numa banca de jornais do Largo da Carioca, no Rio de Janeiro. Esta banca recebia e vendia jornais de todos os Estados, cujas capas, com as principais notícias ficavam expostas, penduradas por pegadores de roupas. Acompanhei, então, os acontecimentos pelos jornais.
    Passada a pandemia, concluí que tratou-se de uma guerra sem vencedores.
    Todos perderam...
    Fernando Florencio
    Em tempo: Saí de Custodia no início dos anos 60.

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  4. Texto extraordinario Jorge. Discorre com uma leveza espetacular e nos traz alegrias, tristezas e muitas recordações. Abraços da amiga Lucia Góis. Estamos aguardando seu livro.

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  5. Excelente. Lembro-me desse dia fatídico que Chico perdeu os dedos. Houve uma comoção. Retratou bem a divisão imposta pelos partidos a ponto de transeunte da UDN não poder passar na calçada da casa de Zé Florêncio ou da Sede do PTB. Foi o começo de uma guerra que abalou todos nós. Vimos dias difíceis, foram muitas perdas dos dois lados. Parabens pelo texto e principalmente pala coragem de expor um tema que sessenta anos depois ainda é um tabu para muitos.
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  6. Jorge parabéns, perfeito seu texto, retrata fielmente a política, não só da nossa terra, mas da maioria das cidades pernambucanas. As oligarquias políticas lutavam para manter o poder e nomear as autoridades do munícipio, tais como delegado promotor, juiz, coletor etc. isso era fundamental para o processo político. às vezes uma corrente tina o poder local e a outra o poder estadual, o que acirrava ainda mais o clima.

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