13 setembro, 2021

Né Marinho meu pai - Por Laíse Pires

 

Né Marinho

Conterrâneo de Custódia e escritor do melhor quilate, Zé Melo escreveu uma irretocável biografia de Manoel Marinho de Rezende - Seu Né ou Seu Né Marinho, como era chamado. Quando leio, sempre me emociono, porque, num estilo que faz o que diz fluir leve, sonoro, livre e bonito, ele revela traços que identificam fielmente meu pai. Tenho inveja, no bom sentido, desse texto de Zé Melo. Em Memórias de Né Marinho e Ester Pires, minha irmã Vanise, escrevendo bem e bonito, acrescentou dados importantes, que me tocam muito. Resta-me falar do que gosto mais, que é sobre a figura dele nos seus contornos mais pessoais, no seu jeito de ser e de lidar com o outro.

Na verdade, pra decidir escrever sobre ele, fui provocada, no melhor sentido da palavra, por alguns dos tantos conterrâneos que guardam dele tantas e tão importantes lembranças. Lúcia Góis, que tem um forte sentido de valorização do outro, deu o toque inicial: “Grande homem, desejaria conhecer mais da sua personalidade íntegra, ser humano bondoso, que deixou boas recordações.Como é prazeroso falar de alguém que deixou marcas de amizade, amor e respeito com o outro!”  Luciano Veríssimo escreve: “Lembro dele tomando uma cervejinha só. Muito educado e atencioso.” E Célia diz que “Gostaria de saber mais sobre ele.” A prima Socorro relata: “Né Marinho, meu tio avô, lembro dele em Custódia e já no Recife, quando passava na Av. Guararapes, lá estava ele no Bar Savoy tomando sua cervejinha e trajando elegantemente com seu impecável terno e gravata. Realmente foi um grande homem e de suma importância para Custódia.” Josamira Duarte, filha de Seu Abílio e irmã de Joanita, que trabalharam com ele por longo tempo, resume: “Um ilustre cidadão que fez a diferença na nossa Custódia.” E Marcos Moura: “São muitas e marcantes e boas as lembranças que temos do Sr. Né Marinho, o homem educado, que se vestia com elegância, sempre de terno e gravata, com aquela forma inesquecível de pentear o cabelo, eu muito jovem me lembro dele. Tenho lembrança dele no Bar Savoy em Recife tomando umas cervejinhas com Clodoaldo, esposo de Marival. Boas lembranças desse ilustre custodiense.” Ele marcou sua presença no seu tempo, inclusive para esses e outros jovens da época. Como filha, não posso furtar-me ao que me cabe e que me dá prazer. E ainda, por outras linhas, cumpro meu desejo de atender a um antigo pedido do querido Paulo Peterson.

 

Né Marinho e sua esposa Ester Pires.

Meu pai, um homem inteligente e íntegro, era sempre e naturalmente educado, tranquilo, sereno, manso, pacífico, solidário, generoso e conciliador. E outros tantos adjetivos caberiam para definir a rica figura humana que ele foi. Essas características conquistavam todos quantos dele se aproximavam.

O que toca mais forte em mim é o seu traço generoso e conciliador, que me vem à lembrança sempre que penso nele. Lembro que havia uma espécie de “freguesia”, formada por aqueles que o procuravam na certeza de que podiam contar com ele - porque sabiam do seu grande coração e de ser ele um “mão-aberta”. Tabelião que foi por toda uma vida, era procuradíssimo para dirimir contendas as mais diversas, no cartório, vizinho do seu Bar Fênix, que ficava ali no “quadro da rua” - ou Praça Padre Leão.

Guardo histórias que revelam alguns desses traços de papai. Certa vez, foi procurado por um proprietário de terras, conhecido por Seu João Velho. Queria ouvir papai sobre uma questão para poder “brigar na justiça”. Tratava-se de uma demarcação de terra em que um proprietário vizinho avançara o sinal: ao colocar a cerca divisória, suprimia uma estreita “tira” das terras do João Velho. Papai ponderava: - “Mas você tem muitas terras, e essa faixa não vai lhe fazer a menor falta! Deixe isso pra lá! Pode lhe trazer problema de inimizade, de briga ... A gente nunca sabe do que o outro é capaz...” E ele: - “Não, Seu Né, não é pela “tira” de terra que eu estou brigando, não, que não vale mesmo nada pra mim – é só pelo desaforo!” Mas acabou cedendo aos convincentes argumentos do meu pai.

Um dia, criança ainda, fui procurá-lo no cartório, chorando, pra me queixar de Seu Antônio Mataverde, que geria sua “banca de bicho”. Eu tinha jogado no macaco, e ele não quis me pagar, dizendo que deu borboleta. Papai fez aquele sorriso, pôs a mão na minha cabeça e disse: - “Vá lá e diga a ele que eu mandei dizer que ele se enganou, pois o bicho que deu foi macaco - e que pague o prêmio agora.” Vitoriosa e enxugando as lágrimas, fiz o que ele disse. Seu Antônio Mataverde curvou-se, me escutou, olhou pra mim de um jeito de quem percebe o outro na sua inteireza - e que ficou gravado para sempre na minha lembrança - sorriu e cumpriu o recado. Meu pai era o máximo, pensei.

Numa de suas idas ao Recife, que nos deixava sempre na expectativa do que traria na volta, me contemplou com um casaco de frio, que vejo ainda hoje nítido na minha lembrança – era de um vermelho “puxando pra cor de jerimum”, com listras brancas nos punhos e na gola alta. Caí no choro! Como merecia tanto? E por que só eu ganhei presente? Essas questões me dividiram: em vez de só envaidecida, fiquei preocupada, embora feliz.

 

 Nesta última foto, eles  estão com a primeira neta - Letícia -
e com o último neto - Danilo.

Ele tinha o hábito de dar um cochilo após o almoço, numa antiga espreguiçadeira que ficava na sala de jantar. Cobria o rosto com aquele lenço branco de que Zé Melo fala com tanta propriedade, e cada uma das filhas, num rodízio por dia da semana, assumia ao lado dele a tarefa de fazer cafuné, mais na careca do que nos cabelos, que o tempo ia rareando cada vez mais. Ganhávamos alguns trocados, mas a preguiça e a aflição, por perder tempo sem ir pra rua brincar, geravam algumas vezes aquelas típicas discussões de que “ontem fui eu - hoje é você!” E quando calculávamos mal, achando que ele já dormia, e saíamos de mansinho, ele apertava nossa mão, mostrando que ainda não pegara no sono. E reassumíamos nosso posto.

Os juízes e promotores que atuaram em Custódia, na época de papai, tinham a maior admiração por ele - porque com ele aprendiam muito exercitando as lições teóricas que tinham recebido na faculdade. Um deles, Dr. Mauro Jordão de Vasconcelos, juiz talvez na primeira comarca que assumiu antes de vir a ser o ilustre desembargador, tempos depois, foi meu professor de Processo Civil, na Universidade Católica de Pernambuco. Certo dia, em plena aula, falou sobre meu pai, tecendo-lhe os maiores elogios, sobretudo por sua impressionante inteligência, pois, com um mal concluído curso primário, tinha um nível de saber capaz de ensinar importantes lições de Direito. E, comovido, disse da sua enorme gratidão a “Seu Né Marinho de Custódia”. Foi uma das maiores emoções que tive na minha vida.

Essas e outras histórias do meu pai traçam um pouco o seu jeito de ser. As características e a rica experiência dele o levaram, aposentado, a continuar trabalhando, no exercício da advocacia, como rábula, no bom sentido da palavra – “pessoa que advoga sem ser formada em Direito”. E era uma incontestável razão para, morando no Recife, continuar indo sempre à sua amada Custódia, servindo e defendendo o direito do mais fraco. Esse ofício caía como uma luva no seu perfil.

Seu traço generoso e conciliador acho que ele imprimiu em nós, filhos, e repercutiu nas nossas relações. Até hoje, não registro qualquer séria desavença. Sempre fomos amigos, nossa relação é pacífica - o afeto tece as linhas que nos ligam uns aos outros. É uma herança dele e da minha mãe, Ester, esse lidar respeitoso e amoroso com o outro e com a vida. Ela deixou singulares marcas de genuína ternura e incontáveis lições de resiliência, fortaleza e fé - bastaria lembrar as prematuras e traumáticas partidas dos meus irmãosCecéu e Hélio.

Recentemente, numa conversa em que tecíamos certas lembranças de mamãe, seu neto Petras, filho mais velho de Herbert, disse: “Quando a gente fica triste pelas nuances da vida, eu ‘miro’ em vovó Ester, e a leveza dela me acalma.” E Diogo, meu filho mais velho: “Eu pude refazer essas imagens e vejo Dona Estar e Seu Né sempre presentes com o seu legado.” Ele lembrou que eu gostava muito do “imbu com leite”, a inesquecível imbuzada que ela fazia - “sumo de imbu, fervido e passado na peneira, com leite e açúcar” -mas a preferência dele era o seu doce de mamão. Essas doçuras repassavam pra nós aquelas que nutriam abundantemente seu coração.

Um outro traço importante e bonito do meu pai foi a preocupação permanente que teve com a educação dos filhos, prioridade absoluta na lista do apoio que deu a todos nós. Procurou fazer o melhor pra cada um, sem deixar de cobrar, ainda que discretamente, numa visão rara de futuro – a questão estudo era inegociável. A regra valia para todos: de Leny, mais entusiasta, a Marilda, mais relutante. E todos, cada um a seu modo, seguiram essa diretriz. Ele estimulava cada passo e vibrava intensamente com as nossas conquistas – até além do que queríamos. O orgulho de nós fazia brilharem os seus olhos e abrir aquele sorriso de puro prazer - tão característico dele.

Lembro de quando concluí o curso pedagógico, inevitável caminho para as jovens da época, após o curso ginasial. Eram três anos. Como fiz o primeiro no Santa Doroteia, em Pesqueira, e os dois últimos no IEP-Instituto de Educação de Pernambuco, eu não tinha direito, pelas regras vigentes, ao prêmio de uma “cadeira de professora” com que se contemplava quem conseguisse o 1º lugar, pelas melhores notas no curso, desde que cumprido integralmente no IEP. Meu pai soube e “comprou a briga” – não admitia que eu, tendo as melhores notas, não ganhasse aquele prêmio por ter cursado o 1º ano em outro colégio. Garibaldi Sá, jornalista amigo dele e sobrinho de Dona Maria de Seu Ernesto, defendeu esse meu direito no Diário da Noite – e eu morri de vergonha! Em três edições desse jornal, Garibaldi e o secretário do IEP discutiram a questão. Fiquei numa silenciosa torcida contra, pois não estava nos meus planos ensinar, mas aprender. Graças a Deus, a norma foi mantida – e eu pude seguir meu caminho. O resultado é que ele teve, lá na frente,um motivo de orgulho maior quando fiz concurso para Auditor Tributário, na época Fiscal de Rendas – e resgatei, mesmo sem ser meu propósito, aquela classificação, então fortalecida pelo sucesso de serem duas mulheres ocupando os dois primeiros lugares. Ele exultou e se comoveu, porque sequer sabia que eu ia fazer o concurso - não contei, com medo de não conseguir e deixá-lo triste. Quando um amigo viu a notícia no jornal, ligou pra ele dando os parabéns – ele disfarçou e curtiu aquela enorme alegria.

Dos muitos amigos que sempre teve, Gerson Gonçalves foi um dos mais chegados. Apesar da diferença de idade, os dois, que eram compadres, se davam muito bem. Por conta dessa diferença, me impressionava quando os via em frequentes, longas e animadas conversas.

Avesso a cargos políticos, na sua postura discreta dava apoio ao grande amigo Ernesto Queiroz, sempre que este se candidatou a prefeito da cidade – e sempre ganhou. Num certo ano, meu pai foi instigado a se candidatar a prefeito de Custódia. Em nota no jornal Diário da Manhã, se não me engano, o jornalista dizia que ele seria o candidato “a reunir maiores simpatias”, mas que não queria “nem ouvir falar no assunto”, pois, se não quis quando jovem, não iria, quando já gozava da aposentadoria, entrar nessa história. Desvencilhou-se rapidamente da tentativa, no seu jeito silencioso e convincente de agir – e não se falava mais nisso.

Impregnada no seu coração e na sua mente, Custódia estava presente em quase todas as conversas da família – tudo convergia para aquele espaço onde se fincaram as raízes de nossa família, a partir do encontro de meu pai com a minha mãe, que veio de Tabira. Ali em Custódia nascemos, ali crescemos, ali se consolidou o nosso núcleo familiar. E ali aprendemos a ser cidadãos de bem. E ali descobrimos um jeito de ser amigo que hoje é uma coisa rara de se ver.

Até os últimos dias de sua vida de praticamente um século – partiu em março de 2002 e faria 100 em setembro – o vínculo afetivo de meu pai com a nossa terra-mãe manteve-se firme e forte. Custódia era uma palavra mágica, que circulava naturalmente entre nós, especialmente com ele, pois a lembrança desse lugar trazia sempre o prazer que marcava o seu inesquecível sorriso. Até o médico dele, nas visitas regulares que lhe fazia, entrava contando que tinha acabado de chegar de Custódia. E dava as notícias que ele queria ouvir: estava chovendo por lá, e os conterrâneos, felizes, porque tudo se cobria de verde. Ele abria aquele sorriso, e seu rosto se iluminava – era o melhor sinal da alegria que enchia o seu coração.

  Texto
Laíse Rezende (filha) com Danilo seu filho
Recife-PE
Setembro – 13.08.2021

2 comentários:

  1. Brilhante texto sobre essa pessoa ímpar que foi o Sr. NÉ MARINHO. Orgulho para nos CUSTODIENSES. Resiliente, Educado, Generoso. Um grande homem. Abraços de LUCIA GOIS e FAMILIA

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  2. Parabéns! Laíse, pelo excelente texto sobre oa seus familiares, especialnente o seu honrado genitor Manoel Marinho de Rezende, mas, para todos custodienses, seu Né Marinho. Pessoa de destaque em nossa cidade e que muita contribuição deu ao município. Eu não entendo a falha dos gestores municipais e vereadores, em não procurar saber o passado do município. Isso ocorre em erro e injustiças. Se homenageia estranhos e esquecem as personalidades merecedoras. Lembro de um fato marcante na minha infância, que foi a acolhida pela família de seu Né Marinho, de João. Filho de Naria, a qual com problemas mentais e vivendo quase n rua, era impossível criá-lo. João acolhido pela família Marinho Rezende, seguiu para Recife quando houve a mudança da sua nova família, e tornou-se um cidadão. Grande abraço minha amiga e viva a memória de seu Né Marinho. Jorge Remígio

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