22 fevereiro, 2023

O Carnaval do ano de 1937 em Custódia

Por
Jorge Remígio 
João Pessoa
Julho/2020

Em pleno carnaval de 2020 em Recife, reunidos parentes e amigos, Dona Genésia Mariano de Rezende comenta. - O primeiro carnaval que eu brinquei, eu era ainda de menor idade. Não sei se em 36 ou 37, mas era de menor. - Aquele comentário me despertou interesse imediato. 

Em pleno reinado de Momo, era pertinente falar de carnavais de outrora. Bastou o interesse e a atenção para Dona Genésia volver a sua juventude e, mergulhando em um passado remoto passou a narrar uma história bastante interessante. Disse que chegou em Custódia um rapaz por nome de Luiz Gomes. Era Sargento da Marinha e veio passar férias na casa de familiares. Era filho de Manoel Gomes, irmão de Cícero Gomes, pai da professora e escritora Sevy Gomes de Oliveira, família muito conhecida na cidade. Sevy é sua prima e é sobrinha de Né Marinho. Para decepção de Luiz, em Custódia nunca tinha havido uma festa carnavalesca organizada. Ficou bastante desapontado, até porque ele vinha da “Cidade Maravilhosa”, terra que respirava carnaval. E agora? 

Em poucos dias foi criada uma comissão organizadora, tendo à frente Maria Rodrigues e Luiz Gomes, ela casada com o viúvo e telegrafista KepleLafayete e filha do fazendeiro Nemésio Rodrigues, primeiro Prefeito de Custódia (1929-1930). Foi redigida uma carta convite para os senhores chefes de família, pedindo a permissão a estes para a filha ou filhas participarem do bloco carnavalesco que desfilaria no quadro da rua principal e também dos bailes que estavam programados. 



No convite que o seu pai recebeu, dizia que ficasse tranquilo que o respeito e os bons costumes seriam preservados e também não se preocupasse com a fantasia, pois a organização já estava providenciando. Lembra muito bem que a sua fantasia foi uma saia vermelha com corações de cor preta aplicados. Três na frente e três atrás. A blusa era verde, aberta na frente com uns buraquinhos por onde passava um torçal branco formando uns X e terminava no decote com um lacinho, era assim que fechava a blusa. E ainda ganhou um saquinho com confetes. 

A minha curiosidade aguçava-se ao desenrolar daquela narrativa histórica, afinal, estávamos envolvidos em um fato ocorrido há oitenta e três anos. Prosseguindo, falou que foi acompanhada das irmãs Carmélia e Joaninha, encontrando-se com as amigas Luzia Aleixo, Odete, Eliete, Consuelo e outras que já estavam na concentração. 

O carnaval foi aberto com o desfile do bloco onde hoje é a praça. Na época não havia a praça, era só o chão batido. Disse que foi muito animado, moças e rapazes cantando as marchinhas de sucesso e o músico Ozael tocando num clarinete. Perguntei se não havia outros músicos acompanhando o bloco e ela falou que não. Era só Ozael no clarinete.

Eu ficava deslumbrado a cada etapa daquela narrativa, principalmente quando ela falou que as músicas mais cantadas foram, Pierrô Apaixonado e Um Sonho que durou três dias. Ainda cantarolou partes dessas marchinhas carnavalescas que ficaram em sua memória. A citação dessas músicas foi importante para algumas compreensões. Pedi licença, dizendo que voltaria rápido, mas o pretexto era fazer uma consulta ao Google. Estava lá: Pierrô Apaixonado, música de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, lançada no ano de 1936. 

Um sonho que durou três dias, autoria dos pernambucanos Irmãos Valença, lançada no início de 1937. Pensei de imediato. O carnaval foi no ano de 1937 e Dona Genésia tinha 16 anos e sete meses. Voltei rápido para não perder o “time” da narrativa e confesso que algumas vezes a interpelei para dirimir dúvidas. Fiquei pensativo. “Como decoravam aquelas músicas, se nem rádio havia na cidade” Ao perguntar, disse ela que na cidade havia uns dois gramofones, era um aparelho que passava discos após rodar uma manivela e as moças iam copiando as letras. 

Houve uns ensaios, mas o seu pai não permitiu que ela participasse. Aprendeu partes das letras e sabe cantar até hoje. No bloco ficaram cantando e circulando em torno de onde hoje é a Praça Padre Leão e não havia bebidas, mas o lança perfume, sim. Eu na minha ingenuidade nem fiz uma pergunta, e fui logo afirmando. “Mas o lança perfume era só para perfumar, borrifar nas pessoas, não cheiravam, não tomavam porre, no caso”. Ela olhou na minha cara e foi categórica. - Não! Tomavam porre sim. Os rapazes botavam nos lenços, nas camisas, davam também para as moças. 

Eu soube que depois foi proibido porque ofendia ao coração. - Fiquei meio desconcertado, mas disse para ela. “Sim, mas só foi proibido em 1961, quando Jânio Quadros era o presidente.” - Após o desfile de abertura no domingo à tarde, houve três bailes no Salão Paroquial que ficava na Várzea. Um prédio que depois foi transformado no Posto de Saúde onde trabalhei e hoje funciona a Escola Maria Augusta. 

- Outra dúvida minha, sabendo que em 1937 não havia luz do gerador, o chamado motor, como ocorreram esses bailes. “Os bailes foram de dia”? - Não, os bailes foram à noite e utilizaram vários lampiões a gás, tinha um grande que ficava pendurado no centro do salão, iluminava muito - “Dona Genésia, no bloco não houve bebidas, certo? Mas, e nos bailes?” - Sim, nos bailes tinham bebidas. A cerveja não era gelada, pois não havia geladeira naquele tempo. Tomavam cachaça e também vinho, tinha um vinho cor de rosa, outro vermelho e um verde que chamavam verdinha, este tinha pouco álcool, não embebedava. As moças não tomavam cachaça, só vinho, verdinha e gasosa, que era bem docinha, como os refrigerantes de hoje. - “Quem tocou nos bailes do Salão Paroquial?’’ - Ozael, mas ele teve a ajuda de um sanfoneiro chamado Vital. Era um rapaz de fora, de Pesqueira, namorou com Julieta que depois casou com Livino. - Todas aquelas cenas não saiam da minha cabeça. Como as pessoas se divertiam com tão pouca coisa e tantas improvisações. O clarinete de Ozael parecia soar nos meus ouvidos. Puxou, como se diz, quase sozinho todo o carnaval. Acho que o Ozael foi um herói. Imaginei o estado dos seus beiços na quarta-feira de cinzas. 



Hoje, 13 de julho de 2020, Dona Genésia está completando nova idade. Estamos comemorando, mesmo na quarentena, o seu centenário (1920-2020). Lúcida, com muita saúde e dando informações valiosíssimas que ficarão para posteridade. Parabéns! Muita felicidade, vida longa e obrigado por ser sempre tão gentil e solícita. Viva! Dona Genésia, viva! A cultura, Viva! O carnaval.

11 comentários:

  1. Muitas felicidades para Dona Genesia e para o autor Jorge Remígio pelo belo texto.

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  2. Que bela narrativa, amigo Jorge!!!
    Mil Vivas à Dona Genésia!!!
    Uma centena de anos é para poucos!!!
    ✨🙏🏽✨🌹✨

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  3. Que bela narrativa, amigo Jorge!!!
    Mil Vivas à Dona Genésia!!!
    Uma centena de anos é para poucos!!!
    ✨🙏🏽✨🌹✨

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  4. Crônica fantástica 👏👏👏👏

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  5. Jorge!

    Dentre outras coisas que amo fazer nesta vida, uma delas, é ler um bom texto. Essa sua homenagem, ao centenário de dona Genesia, em que você narra um carnaval que marcou época, é um presente não só pra ela, mas todos nós custodienses porque decreve um acontecimento histórico até então desconhecido.
    De tão bem escrito, ao concluir a leitura, reli e me deleitei com cada palavra que me levou a viajar ao passado e sentir, como se lá, estivesse. Parabéns!

    Parabéns, dona Genésia, por ajudar a contar essa linda história, nos seus 100 anos de vida, com saúde e lucidez.��❤️

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    1. Obrigado, amiga Leônia. Você é muito importante para nossa comunidade. Abraço. Jorge Remígio

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  6. Parabéns para dona Genésia, muita lucidez. Parabéns Jorge pelo belo e importante texto.

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  7. Repito aqui, Jorge, que, lendo o que você escreve, tenho sempre a sensação de me deslocar para outro espaço, de viver acontecimentos de outro tempo e de rever pessoas que não vejo mais, tudo no contexto que constrói a sua narrativa. Como bem diz Leônia Simões, que "não me deixa mentir", falando sobre seu texto: "... me deleitei com cada palavra que me levou a viajar ao passado e sentir como se lá estivesse." Pois é a ssim que me sinto: levada para um tempo que ainda não era o meu. Você traz pro seu texto as lembranças inteiras e vivas que Genésia guarda. E haja espaço nessa privilegiada memória! Eu tenho que dizer que é fantástico ela descer aos detalhes da fantasia que usou, do "cheiro" do lança-perfume, do nome do músico que tocou clarinete e do sanfoneiro, de Um Sonho que Durou Três Dias e de Um Pierrô Apaixonado, sucessos que vararam o tempo, dos Bailes no Salão Paroquial, que eu jamais imaginei que pudesse ter acontecido um dia, de todas as etapas do processo de permissão das famílias para as jovens participarem do Carnaval, do nome das amigas...
    Bendito talento de Jorge!
    Bendita lucidez de Genésia!
    Laíse Rezende

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  8. É com muita honra relembrar que apesar dos anos minha querida tia avó fez menção aos tempos. E a lembrança de minha outra tia, sem contar com minha querida avó Carmélia. É sem dúvida que essas informações são de grandes narco para nossa cidade . Obrigada por essa busca tão importante para a nossa cultura .

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  9. Meu Deus que texto lindo! Amei me transporteu pra queda época e foi uma linda viagem! 👏👏👏👏👏👏🤣

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