29 outubro, 2025

Prefácio de "O Doce Amargo do Açuçar" livro do custodiense Paulo Mapu



PREFÁCIO PARA PAULO MAPU
 

Este romance de Paulo Mapu, a partir da combinação de diversos elementos entrelaçados por meios ficcionalmente criativos, resulta em surpreendente arranjo que seduz as leitoras e os leitores mais exigentes.  

O doce amargo do açúcar sugere que sensações, motivações, pensamentos e valores são relativos; dependem sempre de quem percebe e vive experiências com o mundo e com outras pessoas, disso extraindo o sabor que lhes apetece ou incomoda. O que é doce para um pode ser amargo para outro; ainda, pode haver um continuum doce-amargo-amargo-doce, a depender de circunstâncias e de estados de espírito. É isto: o que é doce num momento pode ser amargo logo a seguir. Coisas da vida, passageira, traiçoeira, que ora rebaixa, ora eleva; agora sorri favoravelmente para logo depois rir em desprezo num doce-amargo surpreendente. 

Ao lado de lances amorosos e arroubos revolucionários, a escravidão, por exemplo, um dos temas centrais deste romance, pode realçar a ideia desse duplo opositivo amargo-doce, pois terá um sabor para quem recebe chibatadas e outro para quem segura o chicote. Em nosso mundo, sempre há mãos para segurar o chicote: golpes de violência continuam e o enquadre violento do sistema servil ainda molda mentes e dirige ações.

Dentre elementos relativos à escravidão, o romance pincela os tumbeiros, navios de morte em que eram transportados os africanos para as Américas; num deles veio Baquaqua, africano que viveu uma saga em países diversos e nos legou um relato emocionado sobre a atroz condição desses cemitérios das águas; Baquaqua, essa figura inspiradora, fez questão de participar do romance de Paulo Mapu, com um depoimento tocante. 

As peripécias principais deste romance ocorrem em Recife e arredores, importante centro produtor de açúcar na segunda década do século XIX. Há ênfase à Revolução pernambucana de 1817, representada por Cruz Cabugá; o movimento contou com apoio de Frei Caneca, religioso que participaria da Confederação do Equador, ocorrida apenas dois anos depois da Independência, que teve caráter elitista, distante das aspirações populares. 

A economia açucareira estava fazendo a riqueza da elite senhorial de então (o doce), toda sustentada no trabalho escravo (o amargo), percepção que intitula esta narrativa cheia de reentrâncias que oscilam entre esses dois extremos.

Encontraremos neste livro menções a outros eventos históricos, sobretudo referentes a movimentos de resistência, como a revolução do Haiti, que difundiu terror nos senhores de engenho, todos escravagistas. Esse panorama enriquece as ações das personagens, tensionando o andamento da trama.

Leitores e leitoras vão ainda passear por paisagens africanas e conhecer aspectos das culturas de nossos ancestrais; conhecerão Francisco Felix de Souza, o Chachá, o maior traficante de escravos de seu tempo que, por lance de oportunismo e arrojo, chegou a ter muito prestígio em Benin e Daomé; do Brasil negros libertos e parentes para lá retornaram, sob a proteção do Chachá, formando uma comunidade ainda hoje existente, um pedaço do Brasil na terra-mãe. 

A vida de escravizados nunca foi fácil, situação sempre conhecida; eram obrigados a viver sempre no fio da navalha da sobrevivência, para o que era preciso muita arte, o que não lhes faltou, inclusive para lutar pelo fim do jugo que os desumanizava. Afinal, ninguém gosta de viver em escravidão. Não foram inertes nem conformados os escravizados e o romance de Paulo Mapu aponta essa dimensão, inspirado na luta pelo fim do regime servil, com resgate da coragem e da memória de nossos ancestrais.

A liberdade tão sonhada não viria por concessão dos senhores, mas por ação corajosa, consciente de escravizados e de idealistas da Abolição. Nas inciativas do romance figuram mulheres como agentes de protagonismo – de rainhas africanas a jovens brasileiras: Nzinga, Na Agotimé, Tereza, Lucinda, Eliane, Eulália; expõem-se elas à tarefa, nem sempre simples, de reconhecer a violência daquele sistema e de se comprometer com a sua extinção. Assim, há esforços de reabilitação do lugar que mulheres ocupam em processos de resistência, que a elas também dizem respeito; e aqui vai mais uma efetiva contribuição desta narrativa. 

Paulo Mapu é poeta de mão cheia, de aguçada sensibilidade, tendo já oferecido ao público trabalhos de envergadura; aventura-se agora em prosa, gênero que exige fôlego, por certo, o que não faltou ao autor, que produziu um relato romanesco recheado de emoção e de surpresa. Ao longo de sua trajetória, acumulou singulares experiências e desafios que pintaram seus sonhos com a cor da solidariedade e da luta por um mundo justo. Viveu como hippie na juventude, tendo circulado por países da América Latina e convivido com comunidades indígenas, vítimas de interesses diversos, desumanos; como pastor protestante, sempre adotou o caminho mais difícil de olhar – e sentir – o sofrimento dos oprimidos; militou ao lado dos sem-teto; abraçou a causa ecológica; organizou cooperativas. Atualmente é terapeuta comunitário integrativo e se dedica a assessorar mães atípicas, dentre outras atividades. 

Essas emanações de incentivo das pessoas e dos grupos aos quais se dedicou são o pano de fundo que organiza a trama narrativa; acompanham também os enlaces entre as ações das diversas personagens que realçam os recursos expressivos que brotam das diversas relações que mantêm com o conjunto.

Marca saliente deste romance é a dimensão ficcional, arranjada com muito tino e esmero, em que as diversas passagens convergem para a edificação de um todo coerente. Por outro lado, a materialidade linguística é constituída por uma escrita que afrouxa o cinto, tira a gravata e adota a simplicidade do povo que procura representar. Daí nasce a vivacidade e a expressividade da matéria narrada.

África (a mítica, talvez, mas inspiração necessária), Brasil, Cuba, Haiti se encontram numa geografia romanesca para gerar e sustentar a utopia, simbolizada na conjunção amorosa entre Kalimba e Teresa, que representam a comunhão de povos originários daqui e de lá; no romance, o africano e a brasileira-indígena, depois de breve separação, se encontram em solo cubano tendo por miragem os contornos do lugar em que uma revolução de escravos venceu o poderio militar do império de Napoleão Bonaparte: doçura utópica de outros mundos, possíveis.

Tudo pura expectativa de redenção, inspiradora da necessária superação do racismo, herança da escravidão – desafio que ainda incomoda e, por isso mesmo, faz de O doce amargo do açúcar uma narrativa arrebatadora e indispensável para nos reencontrarmos com nossa própria história.


Por Paulo Proença 
professor e especialista em assuntos da África e diretor da TV Matracas


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