De repente. Custódia me apareceu na curva da contra seca. A noite havia me surpreendido em plena viagem. E a luz das estrelas sobre o mágico céu dos sertões, sentindo cheiro agreste da terra revestida de pereiros e de quixabeiras, todas engalanada no milagre do inverno. Na noite embalsamada de junho eu vinha evocando passado, os itinerários da infância tão cheia de marcos indeléveis de fatos de acontecimentos que nunca mais saíram da lembrança.
Ali estava diante dos meus olhos a Vila de Custódia, hoje cidade recolhida ao seu sono, sem rumor nem agitação como eu amava, que a noite ia alta e as estrelas esmaeciam.
Lembrei-me de Proust. Dos roteiros perdidos e dos caminhos ausentes, riscados no mapa do país da infância.
Em verdade amigos, eu não passo de um sentimental. Quem pode matar o garoto que vive no coração de cada homem?
Quem pode fazer silenciar a canção distante vinda do fundo dos tempos, doce canção de embalar que as mães cantam junto aos berços nota suavíssimas de ternura que se destilam no coração, como o orvalho das madrugadas nas corolas abertas?
Por isso eu estava ali, que minha terra era aquele "sertão brabo" de baraúnas e seriemas e quixabeiras e chapéus de couro do pajeú e do moxotó. Eu vinha para romaria ao passado. Para olhar novamente a paisagem amiga que os meus olhos ficaram, quando os abri para o mundo.
A "Fazenda Cangalha", as águas do Bebedouro, a casa grande de "seu" Né da Barra, o alto do Preto Fogo-Pagô, do velho Benício, que fazia o chapéu de couro como ninguém. Muita coisa havia mudado. O tempo destrói. A vontade dos anos tem fome e tudo devora. Onde estava a igrejinha branca do padre Leão Verzeri ,onde as corujas gemendo de madrugada e mal assombradas passavam sobre as telhas escuras e o sargento Goiana rifle à mão, autoridade até debaixo d'água? E Erasmo de seu Samuel, alfaiate de ventre redondo e sopro macio no bombardinos? E o fogueteiro João de Barros, de voz rouca contando "causos", caçadas de onça, encontros com Lampião, visitas ao meu padim "Padre Cicero" e tanta história que ele colocaria com a imaginação, fértil, trepado nos fardos de algodão de seu Antônio do Junco?
E o soldado Mané Galo, sentado no tamborete e descascando cana caiana com a faca de ponta, dizendo a Lampião, num rasgo de audácia - "Vossa senhoria só entrou aqui na vila sem dar tiro, porque eu sou um sordado destacado e tomo conta de seis preso, mas se tivesse outro, eu deixaria ele aqui vigiando os detido e antes de entrar na rua, nós ia ver quem era mais homem"
Evoquei os meninos de "seu" Joaquinzinho da Cangalha", do açude da Rua da Várzea, criados ao sol e chuva companheiros de travessura e dos bancos de escola da professora dona de seu Serapião, senhoras do mundo e da vida nos longos passeios pelas fazendas vizinhas e nas retiradas dramáticas de seu Antônio Junco, pedindo dinheiro e jurando bala de papo-amarelo e de rifle cruzeta. Evoquei os amigos primeiro das travessuras banhos de açude, caçadas de arribaçãs, nas quais Catonho Florêncio era o rei da pontaria e das mentiras de arrepiar. Por certo que já não existiam mais moirões das porteiras onde trepados, vimos o gado recolher a tardinha. E as novenas do mês de maio?
Festa de São José com as zabumbas roncando e o foguetórios espantando os cavalos da matutada, alguns dos quais amarrados ao pé do coco catolé, que havia de fronte a casa do velho Gomes e do tamarineiro de seu "Joaquinzinho".
Grande e estranho mundo de aventuras de liberdade de sol ardente. As vezes passavam as redes dos defuntos, enfiados em caibros longos, gotejando sangue, que o morto "brigará até morrer", como diziam os acompanhantes. Então a meninada seguia o enterro, subia a encosta ao nascente da vila, penetrava no pequeno quadrado do cemitério e via depositarem na terra vermelha, o corpo dos que morriam por dá-cá-aquela palha". Tomava-se parte da vida, em tudo: nas suas dores, nas suas amarguras, nas suas alegrias
12 de Fevereiro de 1950
Bela crônica do saudoso promotor e escritor Luiz Cristóvão. Residiu em Custódia, quando nossa cidade era ainda vila, na década de vinte. Sua infância foi tão marcante em Custódia que está presente em vários dos seus belos e poéticoos textos. Tive o prazer de conhecer a sua esposa e filhas em janeiro desse ano de 2025. Jorge Remígio
ResponderExcluirIsso é muito bom
ResponderExcluirQue linda história!❤️👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluir