13 junho, 2025

[Bilhetes do Sertão: Luiz Cristovão dos Santos] Evocação de Custódia



Este recorte de Jornal, foi encontrado por Fernando José nos arquivos pessoais de Osminda Carneiro. Foi escrito por Luiz Cristovão dos Santos e publicado na Revista do Agreste (Arcoverde, 1949). Também foi publicado em 
Bilhetes do Sertão, Poemas e versos sobre o sertão Nordestino.


Meu pai era farmaceutico na vila. O velho Manuel Cristovão dos Santos atendia vinte leguas ao redor, montatado numa fubica Ford, curando mazelas, ajudando a nascer os caboclos ser­tanejos, as vezes operando milagres, como no salvamento de Antonio Caipora, que lcvou um tiro de fuzil, na "taba-da-venta" do soldado Euclides e hoje esta vivo para contar a história e a pericia do velho Cristovao.

Naqueles mundos, sem recursos medicos, meu pai era um herói anônimo, atendendo a quern o procurava, de noite ou de dia, correndo risco de vida como na vez que Lampião mandou buscá-lo, noite alta, por um mensageiro suspeito, pretextando um parto nas vizinhanças quando em verdade, bem pertinho, o bandido estava com três "cabras" baleados.

A hora da saída, por intuição, minha mae desconfiou daquele chamado a "peso de ouro" na madrugada deserta. No outro dia sabia-se da realidade: Lampião tencionava incorporar a tropa "um doutor" para tratar dos feridos nos tiroteios. Naquela vida aspera de terra bár­bara, com as volantes do tenente Higino batendo as estradas, as alpercatas rangindo e o sol faiscando no aço dos mosquetões, no meio ambiente agrcssivo onde as notícias dos tiroteios sangrentos agitavam a vila, como o estrondo dos trovões de março, havia algo de es­tranho e novo para minha sensibilidade.

Era um homem baixo e moreno, cujo nome esqueci, que invariavelmente nos dias de feira chegava logo cedo a casa do comerciante Leopoldo Mafra. Entrava em silencio e tranquilamente se encostava ao balcão. Tambem em silencio tomava a sua "bicada". "Seu" Leopoldo trepado num tamborete, tirava da prateleira ao lado direito uma sanfona e a entregava ao homem. Ele se sentava, cruzava as pernas, ascendia um cigarro, pendia a cabeça sobre o "foIe" e corria os dedos ágeis sobre o teclado, nas variações.

Entao vinha a música, doce e envol­vente, feita das amarguras da gente humilde, irrmã da alma dos retirantes e do canto maguado das juriti . "Seu" Jose Guilherme - hoje profícuo Coletor em Pesqueira - quedava-se, mãos nos bolsos, os olhos perdidos no além, extasiado com a sanfona hurnilde. Eram valsas chorosas, o baião, as toadas dolentes que vivem no coração do povo e a sanfona as arranca para a vida exterior.

Eu estava de lado, imovel e embevecido. Nenhuma força hurnana era capaz de me tirar dali. Nern os cantadores no pateo fronteiro no meio da feira, cantando a História do Capitao do Navio, o Encontro do Satanaz com o Padre Cicero, a Donzela Teodora, ver­sos do imenso poeta negro Catingueira e de Romano da Mãe d'Agua. Nada me arrastava dali. Eu ficava ouvindo a musica pre­so a mensagem poética daquele artista bárbaro que fascinava a minha sensibilidade de criança com a música que anos depois, deu fama e dinheiro a Luiz Gonzaga.

Ainda hoje ao ouvir uma san fona recordo o artista anônimo, o musico humilde que transmitiu ao meu coração de menino a poesia da alma da minha gente.

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