Gandavos - Últimas Histórias
Custódia-PE
Dezembro/2020
Retórica sentimental
Corria o ano da Graça
de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1974 quando da origem de Os Gândavos, que se
deu no final do referido ano com a peça “Loucuras
em um São João”. Uma obra adaptada pelos alunos da 4ª série do Ginásio Municipal Padre Leão, tendo como finalidade
coroar com êxito o término do curso ginasial. Conclusão obtida com muito
esforço, pois, naquela época, ensino
era coisa séria. Essa peça veio do cordel Coco verde e melancia, que sofreu sérias modificações feitas por
nós. Cada um dava uma ideia, transmudando-a em uma nova engraçada comédia. A
peça foi um retumbante sucesso, leve-se em conta que na época inexistia em Custódia
a máquina de fazer doido ( televisão) e muito menos os “whatsapps” da vida.
Naquele tempo os
meios de comunicação eram limitados, entretenimento mais ainda. Qualquer
atração artística fazia enorme sucesso (circo, cinema de 16 mm de Zé das Máquinas, shows de auditório
de Zé Melo no C.L.R.C). Tudo isso atraía muitos expectadores.
Insuflados por esse
êxito momentâneo, resolvemos dar continuidade à atividade teatral. Aí surgindo
como por acaso e de formação espontânea Os gândavos, termo descoberto
por Domingos em uma de suas
muitas viagens psicodélicas pelas páginas do “pai dos burros”, como se dizia na
época (o dicionário). As pequenas letras
do dicionário fizeram Domingos ler gângavos em vez de gândavos,
na realidade gandavos. Posteriormente
prevaleceu a palavra gândavos por sua eufonia em relação ao
hino do grupo teatral, como acertadamente relata Celêdian em seu texto.
No lusco-fusco de um
fim de tarde, inspirado pelo ocaso, Domingos compôs, em parceria com Tonho Remígio, o hino de Os gândavos, cantado antes das
apresentações por todo elenco do grupo teatral. Em seguida, o pano se abria e
começava o primeiro ato.
Entre os muitos
talentos que compunham a trupe, o que mais admirava era Domingos, por sua capacidade criativa e de improvisação, como se
tivesse vivido uma formação circense. Fraco nos ensaios e um gigante nas
apresentações (que Deus o tenha!). Lembro-me de um fato surreal na cidade de
Iguaraci: teatro completamente lotado, o ator principal tem um coma alcoólico
devido a um pileque homérico, chega carregado nos braços dos colegas minutos
antes da apresentação causando pânico geral em todos. Domingos salvou a
situação substituindo-o em atos divinos de improviso (até hoje não sei onde ele
foi buscar tanta criatividade). Com essa façanha cai o pano.
Fim do primeiro ato.
Tudo começou como uma
simples brincadeira. Fazíamos mais para nosso deleite. Tínhamos como referência
primeira o teatro dos circos mambembes que em suas peregrinações, quase
messiânicas, percorriam vilas, povoados, aldeias e pequenas cidades deixando
uma forte impressão de suas apresentações. Mesmo depois de ir embora, os bordões usados pelos palhaços no
coroamento das piadas eram repetidos pela população, como hoje se repetem os
bordões deixados pelas novelas.
Os pequenos circos que povoavam nosso
imaginário dividiam o espetáculo em duas partes: palco e picadeiro. Começava no
picadeiro com apresentação de equilibristas, malabaristas, contorcionistas, rumbeiras,
mágicos, números de trapézio (sem rede de proteção!), palhaços engraçados que
destilavam piadas picantes fazendo enrubescer o mais sisudo expectador. A
máxima conhecida era: quanto menor o circo, mais “escrotos” eram os palhaços.
A segunda parte era uma
peça teatral. Geralmente comédias escrachadas ou românticos dramalhões. As
comédias humorísticas protagonizadas pelo palhaço principal tinham começo, mas
às vezes não tinham fim. Então eles usavam um artifício bem conhecido da
plateia que era terminar a peça com fogo. Consistia num artista correr atrás
dos atores com um archote aceso. Todos saíam em debandada enquanto o pano caía.
Existiam números que
se repetiam em quase todas as trupes que chegavam. O “piano” era um caso
clássico. Quando começava o quadro, a plateia, pressentindo o que vinha,
gritava em uníssono: “o piano, o piano, o piano” e eles às vezes pegos de
surpresa, embaralhados, encaixavam um novo tema em cima. Algumas companhias sem
essa habilidade simplesmente concluíam o quadro do piano, que era engraçado,
porém muito repetido.
Pressentíamos o final
da temporada quando era anunciada a peça “O casamento do palhaço”. Sabíamos que
logo, logo o circo ia embora.
Anos depois,
conversando com o palhaço Chumbrega, indaguei sobre a repetição dos números em
todos os circos. Disse ele: “Os números são iguais, a diferença é a fascinante
habilidade de cada palhaço.”
A arte primária, bem representada
pelo circo do palhaço Pinicolino, foi
uma grande síntese dessa atmosfera mágica que não existe mais. Essa foi uma das nossas
inspirações.
Apesar de ter nascido
de forma ingênua e espontânea, Os gândavos
posteriormente foi influenciado pelo grupo teatral "Disparada"
da vizinha cidade de Sertânia ( um grupo mais cabeça, formado por jovens
idealistas universitários). Além do teatro, do qual meus dois primos fizeram
parte, o "Disparada" possuía um jornal próprio, crítico e irônico, nos
moldes de "O pasquim". Afinal, era época da ditadura.
Os alunos da quarta
série ginasial constituíam o grupo central da formação original de Os gândavos.
Além de alunos de outras séries e de professores como Jussara, que fez parte da
direção e do núcleo criativo do grupo, que eu lembre, faziam parte meus primos -
os irmãos Tonho e Jorge - Paulo de Zezinho Batista, Jéfferson, Gílson Pereira,
Pedro de Dona Pura, Carlos A. Lopes, Janete, Fátima, Soneide, Evanúzia, figurantes
das demais séries e outros dos quais não me vêm à
memória.
Após mais de quatro décadas, para meu espanto, quem sabe o
destino proporcionou um inusitado encontro: nós que fizemos parte do grupo
original! Esse momento parece mágico, tão emocionante quanto estar em atuação
num palco iluminado. Além das pessoas do grupo original (tão distantes),
autores desse imenso país (distante também) se unem sob o nome Gândavos num
encontro para mim antes impensável.
Lembro-me de uma
apresentação no colégio de Dr. Pedro. Que belas recordações!
Enquanto a peça rolava,
tinha-se o fundo musical “Rosamunde”
de Franz Schubert que dava um ar de atemporalidade ao momento. Em
seguida vieram outras peças: Rua do
lixo, 24, de Vital Santos; Morre um gato na China ou Uma janela para o céu
(Pedro Bloch) e outras que adaptamos de esquetes e de outras obras,
dentre as quais, o drama familiar que começava com a frase de Leon Tolstoi
“Todas as famílias felizes se parecem entre si, as infelizes são infelizes cada
uma a sua maneira” cujo título não consigo lembrar, pois parte dessas recordações
se perdeu nas noites do tempo, nos recônditos mais sombrios das sinapses
cerebrais. Porém algo ficou para sempre. Uma lembrança doce daqueles tempos
ingênuos que jamais poderei esquecer.
Enquanto o pano cai.
Fim do último ato.
(*) Texto já publicado anteriormente, devido a várias modificações, o autor resolveu como forma de divulgação do livro, apresentar a última versão publicada Gandavos - Últimas Histórias.
Para conhecer mais sobre Gandavos, acessar seu blog: Blog Gandavos.
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