05 outubro, 2022

Memórias de uma custodiese

Vanize Rezende
Recife-PE
Abril/2012



Quando alguém se aposenta, após um longo período de trabalho profissional, são recorrentes as oportunidades de repassar a memória dos tempos em que são feitas as primeiras escolhas de vida e ensaiados esboços do que se deseja alcançar mais tarde. São passos de acelerar os tempos, desbravar empecilhos e aproveitar os cruzamentos para refletir, ver como adentrar-se em difíceis estradas curvilíneas, equilibrar-se nos pedregulhos ou superar veredas espinhosas.

Nas caminhadas é possível descobrir a exuberância de uma paisagem à subida da serra, observar vales verdejantes ou ouvir o sussurro das águas que arrebentam nas pedras. Outras vezes surge a singela beleza de um estreito corredor sertanejo, ladeado de arame farpado e cipós ressequidos. Os diferentes hemisférios da vida oferecem paisagens diversas que enchem a vista de belezas únicas. Ao contemplar essas paisagens, os caminhantes podem não se dar conta quando estão a chegar ou a se perder do seu destino.

Com ela não foi diferente. Seu primeiro trabalho, ao terminar o magistério, foi o de enfrentar uma sala de pivetes assanhados que não sabia conduzir. O magistério não era bem o que teria escolhido. Seu pai, cuidadoso com o futuro das filhas, não lhe permitira seguir o curso clássico da época como teria desejado. Sertanejo de rígidos princípios pensava que as filhas mulheres devessem cursar o magistério, pois assim estariam preparadas para o casamento e a maternidade. Quanto aos dois rapazes, estes puderam escolher advocacia e engenharia como desejavam, pois seriam futuros doutores e chefes de família. Esse foi o seu inevitável roteiro de iniciação. 

Assim, quando estava por completar onze anos, seu pai a acompanhou a Pesqueira, cidade agreste das primeiras fábricas de doces, com seus altos bueiros, cuja fumaça anunciava aos viajantes a proximidade da estação de chegada. Era a sua primeira viagem de trem e a primeira viagem a lugares fora dos ares do sertão.

Não obstante a rigidez do internato havia algumas alegres compensações: a saída nos finais de semana, quando era acolhida pelos parentes, na cidade, sempre que conseguisse manter qualidade no estudo e um bom comportamento. Assim, podia ir ao cinema, a grande novidade da época, quando via o seriado de Tarzan ou mesmo um filme com Beth Davis. Seu pai, Né Marinho, a visitava a cada mês trazendo as guloseimas ansiadas, com os sabores de sua terra e as notícias da mãe cuidadosa e terna, ainda ocupada com os filhos menores. Chamava-se Ester e gerenciava a casa da sua máquina de costura, a fazer roupas para os sete filhos.


A vida no internato, na agreste cidade de Pesqueira, era bem diferente dos dias de sua infância em Custódia. Lá aprendeu a cuidar da sua voz suave e tônica e a participar do canto coral que lhe trazia muitas alegrias e suscitava novas descobertas sobre a arte da convivência humana. Nos ensaios do coral aprendia a ouvir o outro com atenção, a levantar ou baixar o tom da voz para harmonizá-la com o solfejo coletivo, a esperar o momento de cantar e saber quando, de súbito, silenciar. Não havia solistas, como nas grandes orquestras, nem as primeiras bailarinas do balé. Importante, ali, era pensar no conjunto harmonioso das vozes com as suas características diferenças. E quantas diferenças bonitas e necessárias!


Aquela jovem estudante, com seus traços indígenas, cabelos pretos e lisos, tinha um olhar curioso e muita criatividade. Os sonhos se abriam para o universo. ao tempo em que aprendia a localizar-se no colorido labirinto do mapa mundi. Sonhos ingênuos de então, que se tornavam sempre mais espaçosos e cheios de desejos.

Foi no internato que ela conheceu melhor a arte de pensar, nos longos momentos de silêncio impostos na sala de estudo. Era um espaço apropriado para que, entre as ingênuas adolescentes do internato, as mais ousadas se iniciassem nos emocionantes momentos de transgressão: ali, escreviam cartas aos jovens estudantes do Colégio Diocesano ou das cidades onde haviam deixado sua infância. Pois o coração da mulher, ainda que criança, já começa a entrever, embora com certo desassossego, as suas escolhas e os seus afetos.

O silêncio e a quase imobilidade exigidos por cerca de três horas para o estudo das internas, mais serviam para a leitura de cartas que chegavam dos correios, sem a intervenção das cuidadosas mestras protetoras, ou fazer bilhetes aos amigos e amigas da cidade e, ainda, para sonhar os sonhos mais reclusos, enquanto fosse possível alcançar o desejo que tinham de ser grandes.

Ali, ela também aprendeu a preparar as famosas filas para o êxito nas provas mais difíceis. Assim, a menina sertaneja planejava muito bem o dia das provas de bordado e tricôt, que lhe resultavam mais difíceis do que as chatas operações de matemática. Sempre se reconheceu limitada mas artes manuais, tão criativas e práticas, mas para ela dificílimas de executar. Havia sempre uma colega que aceitava, em troca de alguns “sopros” nas provas de história ou geografia, preparar um arremedo que fosse da arte manual em causa, a fim de que ela conseguisse, no máximo, o mínimo da nota necessária.

Aos quinze anos iniciou seus primeiros passos da tão sonhada libertação dos pais. Conseguiu que o seu pai entrasse em contato, em Recife, com o hoje grande filósofo e professor Zeferino Rocha, então sacerdote responsável pela Ação Católica da Juventude Estudantil (JEC) na Região Nordeste. Sob a sua tutela seu pai lhe permitiu residir em Recife, numa casa estudantil da Ação Católica. Mais tarde ficou em outro pensionato com mais duas irmãs, aos cuidados uma das outras.

Seu pai continuou a visitá-las a cada mês. A convivência saudável e solidária com outros jovens da Ação Católica promoveu o seu crescimento pessoal e seu interesse por outros projetos e caminhos que descobria. Assim, desenvolveu novos interesses enquanto participava de fóruns de cinema, encontros dançantes entre amigos e desenvolvia uma grande curiosidade pela literatura. Foram os melhores tempos da cultura francesa na formação dos estudantes da época.

Aos 21 anos foi convidada a participar de um evento em Frankfurt, na Europa, o que contribuiu para que aquela matuta, lá do sertão, alargasse mais o seu olhar sobre o mundo e se ocupasse de questões emergentes em outro movimento que privilegiava a fraternidade universal: o Movimento dos Focolares. Foi a sua oportunidade de residir em Roma, trabalhar para complementar a bolsa de estudos que conseguiu na universidade, e manter contato permanente com pessoas de outros países, seja na comunidade onde vivia, seja com os colegas universitários provenientes do então chamado “terceiro mundo”.

Tudo isso levou a jovem universitária a conseguir uma consciência crítica razoável, diante das já então gravíssimas diferenças entre povos, países e pessoas na comunidade universal. Foram nove anos de trabalho social, como também de muito aprendizado e vivências de momentos gratificantes na sua vida pessoal e profissional.

 
Estudou Comunicação Social e Jornalismo e chegou a tornar-se educadora pela urgência das necessidades dos empobrecidos no Nordeste do Brasil. Com o aprendizado nos diferentes programas e projetos que coordenou, na região, exerceu, mais tarde, a profissão de consultora autônoma de secretarias de educação estaduais, organizações não governamentais, centros universitários e outras instituições. Seu mais recente trabalho profissional foi o de consultora de dois programas do MEC, na região metropolitana do Recife. 

Nesse percurso, o exercício do casamento e da maternidade e a convivência com suas três filhas, já independentes e adultas, lhe ensinaram a estar atenta aos sinais dos tempos, às extraordinárias e rápidas mudanças por que passou a sua geração e ao grande salto percebido também na geração de suas filhas. Na convivência desses tantos anos, sua história lhe ensinou a enxergar, com mais clareza, como essas grandes mudanças influenciaram positivamente e profundamente o seu modo de pensar e de agir até aqui, com os setenta e mais anos que carrega com tanto prazer.

Hoje, ao manter a partilha com pessoas de idades e condições de vida diferentes, enriquece-se e amplia o seu aprendizado da liberdade e do exercício do bom senso, o que lhe permite de continuar a fazer novos projetos, acreditar na beleza da vida e estar aberta a novas aventuras, como esta de brincar de escrever, de que tanto gosta. Também não quer prescindir de ocupar-se de trabalhos solidários e das relações de bem-querer.

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