Retalhos... Recortes de uma memória rachada nas secas ventanias do tempo, areia difusa de uma saudade iluminada de alegrias.
As doçuras simples de um tempo sem televisão e sem o toque frequente do Whats App. Não carecia ter o olhar atento ao celular carregado de informações sobrepostas na ligeireza dos raios fortes do Sertão, quando anunciam trovões e chuvarada.
Ele era escrivão no cartório que herdara de meu avô, em Custódia, região do rio Moxotó, a sua e a minha terra natal. Aqueles livros enormes com escritas à mão de caneta tinteiro. Ainda conservo a sua Parker de tampa dourada, ao lado do dedal que minha mãe Ester usava para consertar as roupas dos sete filhos que vieram. Eu, a segunda filha. Quando nasci, ele não veio logo me saudar porque esperava o filho homem que antes não chegara. A alegria tranquila de minha mãe nos cuidados do dia-a-dia. "Seu Né", o chamava. Ele era Manoel, e tinha uma assinatura de dar inveja a qualquer um de tão bonita e rebuscada.
Manoel Marinho vestia-se de terno de linho branco e gravata sempre. O calor não o impedia, mesmo se àquele tempo não houvesse ventilador, quanto menos ar refrigerado. A única mudança era o “guarda pó” sobre o traje, quando viajava de trem até Pesqueira onde estudávamos.
À hora do almoço a mãe mandava um dos filhos buscá-lo, pois havia antes a cerveja gelada com os amigos. A geladeira era peça rara, mas havia uma no bar que por algum tempo fora seu. O almoço devia estar servido à sua chegada, as crianças e a mãe ao redor da mesa. Ele, o primeiro a ser servido. Era gentil, Seu Né, mas exigente, e usufruía bem o lugar que a cultura de então dava aos homens. A obediência dos filhos era coisa sagrada. Como era sagrado fazê-los estudar, mesmo que lhe tivesse custado deixá-los ficar no internato, em Pesqueira, para os primeiros anos de estudo.
Mais tarde viemos todos residir no Recife. Ele já aposentado. Não sabia que sua vida seria tão longeva, pois só nos deixou meses antes de completar cem anos. Nascera abrindo o século XX, em 1902, e partiu à chegada do novo século, em 2002. No fim da vida, o que mais desejava era saber se os filhos estavam desenvolvendo bem a profissão que haviam escolhido. Sorria feliz quando, ao seu lado, eu lhe contava – com os contornos que a veracidade me permitia – as conquistas de cada um e cada uma. E repetia tantas vezes ele quisesse ouvir, para me dizer em seguida: “Cumpri meu dever”.
Nessas rememorações, a minha gratidão imensa ao meu pai. Especialmente por ele ter apoiado uma das mais importantes decisões de minha vida.
Ainda jovem – depois de ter participado de um Congresso na Europa, (minha primeira viagem internacional), resolvi permanecer na Itália, integrando-me ao Movimento dos Focolares. Ele impôs uma só condição. Que eu o fizesse saber da minha inscrição na universidade. E foi, talvez, a convivência com as “escrituras” do cartório que me levaram à faculdade de comunicação e jornalismo.
Desejo imenso de voltar a Custódia para rever cada detalhe e, quem sabe, encontrar a sombra de uma Algaroba num lugar qualquer, que me traga de volta a leveza e a graça da infância que lá vivi.
A antiga casa de meus pais foi desfeita na pressa do tempo, mas o chão que pisei nas ruas da cidade ainda será o mesmo, e os amores da menina adolescente, que um dia fui, serão relembrados naquela nova paisagem sertão.
Ali, quero ser uma presença feliz, e reavivar entre amigos – os poucos que ainda encontrarei – a presença de Ester e de Seu Né, que viveram seus tempos de encantamento naquela cidade, como os vivi também eu nos tempos da adolescência.
(*) Texto publicado originalmente no BLOG ESPAÇO POESE, de Vanise Rezende. Para acessar, CLIQUE AQUI