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12 junho, 2025

[Bilhetes do Sertão: Luiz Cristovão dos Santos] Frei Damião em Custódia (1950)


Imagem ilustrativa
Fonte: Portal São Mamede



Vi Frei Damião pregando na missão em Custódia, voltava de Betânia e notei desusado movimento nos caminhos onde as cruzes em quantidade assinalam as mortes e as emboscadas. 

Depois de "Sítio dos Nunes" inquiri de um dos viandantes apressados qual o motivo da "romaria" e ele me respondeu com a face cheia de Santa indignação por minha ignorância:

- Pois o senhor não sabe? Frei Damião vem aí descendo de Maniçoba.

E sem mais atenção fustigou a burra cardã e abalou pela estrada, pisei no acelerador e entrei em Custódia onde a multidão se esparramava galgando os degraus da matriz enchendo as ruas derramada na praça em bandeirada. Foi quando Frei Damião chegou. O progresso havia modificado o profeta. Porque o frade austero já não percorre os caminhos batendo as estradas com as sandálias humildes, a poeira braba lhe acinzentando a estamenha parda posando nas barbas grisalhas, como os profetas que outrora palmilharam os caminhos do mundo.

Frei Damião saltou de um jeep ultra moderno. Um chauffer (motorista), um frade moço, risonho e corado, de barbas cor de mel, a voz do tenor lírico, lembrando um jovem capitão do Cesares que houvesse abandonado via Appia e andasse desgarrado naqueles mundos.

Na parte traseira da viatura, fios, arames, transmissores, ferramentas, alto-falantes, pick up, e todo arsenal necessário a retransmissão e ampliação da voz temível do frade nas pregações que abalam o sertão. Colocaram uma tribuna na calçada da matriz, o frade moço, mecânico e o chauffer ligou os fios, preparou a engrenagem e a voz de Frei Damião rolou sobre a multidão estarrecida. A princípio o taumaturgo descreveu as delícias do céu, os querubins tocando harpa e uma nuvem de incenso vagando no azul entre anjos e santos. A multidão ouviu em silêncio, maravilhada e boquiaberta, então de repente o frade mudou. Sacudiu os braços e soltou a maldição tremenda:

- Homens sem Deus, mergulhados na lama do pecado. Amancebados! Mentirosos! Adúlteros! Arrependei-vos dos vossos pecados.

E passou a descrever as torturas do inferno. Labaredas subiam, tochas ardendo, um relógio marcando: - "Sempre!" Sempre! Nunca! Nunca! que são as horas da Eternidade. E no meio da fornalha, o suplício tremendo do fumaceiro de enxofre sufocando tudo. Aí a multidão se abateu, lábios ciciavam "Eu pecador me confesso a Deus", as almas tremendo de pavor como corpo sacudidos de maleita. 

Junto de mim um Matuto de Quitimbu, tinha os olhos esgazeados.  Cheguei mesmo a ver o suor lhe empastando afronte morena. Uma velha trancou o chale com força, cobrindo a cabeça toda, temendo uma baforada do Satanás. E ao meu lado um praça desatou o lenço que trazia ao pescoço, como se a coisa ele abafasse a respiração. E voltando-se para um companheiro avisou que ia tomar uma bicada pois o cheiro de enxofre estava lhe sufocando a garganta. 

Depois Frei Damião baixou os braços, serenou a voz, nunca na minha vida visilêncio maior. A praça parada, o povo de lábios chumbados, os olhos fitos no frade, só o vento inocente agitava de leve as bandeirinhas de papel seda que trapejavam acima das cabeças e livres do fogo do inferno. Então o frade rezou e a multidão respondeu contrita e imóvel, como se ao invés de milhares de boca ali, estivesse apenas uma pessoa postada diante do pregador famoso, na hora aguda do "Juízo Final", prestando contas ao Altissimo. 

Aquilo não era Custódia, era o Vale do Josafá.


Luiz Cristovão dos Santos
 Arcoverde-PE
Janeiro de 1950

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